Prof. Dra. Julice Dias[1]
No Brasil, notadamente a partir do final do século XX, novos contornos sobre as relações com a infância e sua educação têm tomado outros rumos, na medida em que se busca, com a contribuição de várias áreas do conhecimento, reconfigurar o lugar social, político, cultural, econômico e educacional que as crianças devem ocupar na sociedade.
Dentre essas reconfigurações, podemos citar a necessidade premente de garantirmos às crianças mais tempo e mais espaço para que elas possam também ser partícipes de decisões que envolvam diretamente suas vidas. Ou seja, que os adultos responsáveis por sua educação, quer na família, quer na creche e na escola, consigam ouvi-las mais e melhor, prestar mais atenção ao que elas dizem, fazem, pensam, brincam, hipotetizam, descobrem e constroem.
Isso tem se colocado como um grande desafio, e quiçá até vários dilemas, na medidaque a sociedade ocidental moderna, historicamente adultocêntrica, tem, cultural e socialmente, relegado às crianças o patamar de subalternidade e passividade social.
Ao levantarmos essas questões, não estamos propondo que se inverta o lugar de crianças e adultos nas relações parentais e pedagógicas, mas que se busque, cada vez mais, ter um controle partilhado do cotidiano vivido, ou seja, equilibrar os tempos dos adultos e os tempos das crianças, a voz dos adultos e a voz das crianças, as escolhas dos adultos e as escolhas das crianças. Partilhar o controle com as crianças é importante, pois oferece às crianças ferramentas interativas para lidar com metas e interesses pessoais e coletivos.
Em se tratando do relacionamento conjugal e a influência sobre os filhos e filhas, essa questão é salutar. Vejamos por quê:
As interações que as crianças estabelecem com o mundo adulto muitas vezes, se não cuidadas de modo responsável, zeloso, amoroso, podem gerar perturbações ou incertezas para as crianças.
No cotidiano da creche, da pré-escola e da escola, muitas vezes as crianças, no jogo de faz de conta, manifestam algumas dessas incertezas em relação ao cotidiano vivido na família. Por meio desses jogos, as crianças, de modo consciente, manifestam medos, preocupações, valores compartilhados, ansiedades, dificuldades que enfrentam com os adultos. Por isso, é de extrema relevância que tanto pais quanto professores estejam sempre muito atentos à rotina de jogos de faz de conta das crianças, pois estes sempre estão conectados aos modelos relacionais dos adultos.
Assim, o jogo de faz de conta ajuda a criança a liberar tensão e emoção. Ao mesmo tempo, essa interação lúdica das crianças com alguns personagens como bruxas, monstros, fadas, enquanto lidam com problemas que fazem parte do seu cotidiano na relação com seus pais – por exemplo, quando os pais têm discussões constantes no seio da família, ou quando os pais se divorciam – servem também para que as crianças, enquanto brincam, possam perceber que é possível ter controle de suas emoções e tensões, mesmo que num jogo simbólico, como é o faz de conta.
Pesquisas transculturais como as de Corsaro (2003) e Vygotsky (1978) demonstram como as crianças lidam com medos reais incorporando-os a rotinas lúdicas que produzem e controlam.
Nesse sentido, o conceito de controle partilhado é importante para a produção e participação no mundo das crianças. As crianças reiteradamente desejam entrar e fazer parte do mundo dos adultos. Assim, ao lidar com questões problemáticas no seio da família, as crianças tendem a buscar no jogo simbólico, na atividade lúdica, na brincadeira, estratégias complexas que permitem a elas lidar com suas tensões internas.
Quando algumas dessas representações tornam-se rotineiras, em casa ou na creche, na pré-escola e na escola, é importante que pais e professores fiquem atentos e busquem adentrar no universo infantil para compreender e intervir, quando necessário, em alguns comportamentos infantis que podem ser sinalizadores de que algo não está bem. Por exemplo, se reiteradamente a criança, no jogo simbólico, manifesta ações nas quais representa sua mãe como bruxa, pode, com essa estratégia simbólica, implicitamente, demonstrar que tem com a mãe nesse momento relações de fuga e evitação.
Mais do que tudo, os adultos são responsáveis pela segurança emocional das crianças. Tanto na família, quanto na creche, pré-escola e escola, as crianças descobrem interesses, produzem um amplo conjunto de práticas culturais, de modo complexo e estrutural.
Quando a família passa por situações difíceis, casos de morte, divórcio dos pais ou conflitos constantes em casa, as crianças tentam lidar com essas confusões, preocupações, medos que fazem parte de sua vida cotidiana. Muitas vezes as crianças conseguem lidar de forma lúdica com muitos desses sentimentos ambíguos e contraditórios pelo jogo de faz de conta. Conhecer, compreender e intervir de forma educativo-pedagógica é não só muito interessante, como também, necessário nas relações que pais e professores estabelecem com a infância e o modo concreto de ser criança na nossa sociedade.
REFERÊNCIAS:[2]
CORSARO, W. Rotinas e cultura de pares em creches e pré-escolas norte-americanas e italianas. Sociology of Education, 2003, p. 1-14.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. Harvard University Press. 1978.
[1] Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual de Santa Catarina – UDESC. Pesquisadora do GEDIN da mesma Universidade. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC.
[2] O título das obras são de tradução livre da autora.
Artigo publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccional da Grande Florianópolis nº 6, junho de 2015, p. 38.
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