Hoje observei uma criança a ser traumatizada. Nada pude fazer para o travar. Tudo o que eu fizesse na hora iria piorar.
Mas hoje escolho não ficar calada, pois se fiquei impotente neste caso particular, muito posso fazer para proteger do trauma imensas meninas e meninos que atualmente são vítimas sem ninguém se aperceber. Posso fazer educando e por isso peço que me leia até ao fim.
Na verdade já algum tempo que regularmente observo crianças a serem traumatizadas por aqueles que mais amam: os próprios pais.
Não estou a falar de molestamentos, espancamentos ou situações facilmente condenáveis quando em praça pública. Estou a falar de pais e mães carinhosos, preocupados, empenhados em proporcionar o melhor futuro possível aos filhos. Pais e mães como eu. Pais e mães a acompanhar os filhos em aulas online, por exemplo. E que quando observados nas suas dinâmicas tudo parece normal a olhos menos informados.
Muitas vezes escuto a pergunta: O que vai ser da geração COVID?
Esta é a minha resposta: Vai ser uma geração como outra qualquer. Com futuros doentes mentais devido ao COVID, com futuros homens e mulheres de enorme sucesso devido ao COVID e com todas as variáveis no intermédio. Mas certamente que vai ser uma geração traumatizada, com um dos traumas menos compreendidos dos tempos modernos: o trauma de vínculo.
Daniel J. Siegel[i] apresenta-nos um conceito tão estranho como revolucionário: o conceito de Medo sem Resolução.
Mas o que é isso de medo sem resolução? Muito simples, é quando o nosso protetor, o nosso vínculo ou vínculos principais, a pessoa que nos deveria fazer sentir seguros no mundo é aquela que nos assusta, aquela que nos faz sentir em perigo de vida.
O medo sem resolução cria o que para mim é um dos piores traumas de todos os tempos: o trauma de não sermos donos da nossa vida mas sim vítimas de um destino cruel.
E se isto pode parecer pouco, permita-me recordar que em experiências realizadas em animais, assim como em investigações realizadas em seres humanos através de estudos longitudinais, se provou que o trauma é um dos grandes responsáveis por comportamentos autodestrutivos como o vício da droga (entre outros vícios), a permanência num namoro ou casamento com violência física ou verbal e a estranha dinâmica observada em algumas vítimas de bullying (que em vez de se afastarem do bullier procuram desesperadamente a aprovação, pagando o preço do trauma com a própria vida).
Nem todos os casos são tão radicais, mas como o dirá qualquer vítima de trauma de vínculo, é algo muito, mesmo muito debilitante e incapacitante. Mesmo quando a vida se mantém na rota certa e até é bem-sucedida. Tal como explica Bessel Van Der Kolk[ii] no seu best-seller internacional: “O corpo não esquece”.
Mas voltemos ao início e permitam-me explicar-me melhor, ligar todas as peças do puzzle que fui regurgitando em cima.
Os seres humanos são seres de vínculo, sendo que podemos substituir o termo “vínculo” pelo seu sinónimo “relacionamentos”.
Os seres humanos são seres de relacionamentos, possuindo um conjunto de instintos, impulsos e toda uma neuro-química dedicada à procura e preservação desses relacionamentos (vínculos). A razão é muito simples: a sobrevivência.
Imaginem um bebé que nasce num contexto em que ninguém se vincula a ele. Como é o vínculo aos nossos descendentes (ou outras crias da nossa espécie) que desperta em nós a necessidade (instinto) de cuidar deles, um bebé sem vínculos é um bebé sem hipóteses de viver, pois não terá quem o alimente e proteja. Cenário irreal? O que lhes parece que está por detrás dos recém-nascidos abandonados em caixotes do lixo ou outros locais como tal?
Os bebés nascem já com esta neuro-química de vínculo, o que se traduz em comportamentos (instintos e impulsos) de vínculo que variam entre o instinto de sucção, o segurar no dedo que é colocado na palma da sua mão ou até aquele cheirinho a bebé que faz qualquer um derreter e querer proteger aquele ser tão indefeso.
Já agora, se gostar de ler e só por curiosidade, pode folhear o romance “O Perfume” de Patrick Suskind e maravilhar-se com a intuição de um artista (neste caso escritor) que nos apresenta de forma tão cativante uma realidade tão difícil de explicar cientificamente: um bebé que nasce sem neuro-química de vínculo, numa família (mãe) sem instintos de vínculo. Qual o futuro? Uma criança negligenciada, que vai sobrevivendo por sorte acaso e se transforma num assassino.
Voltando ao que interessa. Os seres humanos são seres de vínculo e os nossos vínculos servem para sobrevivermos e nos sentirmos seguros neste mundo. Isto faz com que o primeiro instinto de cada um de nós, quando em perigo, seja correr para os nossos vínculos.
Quando acontece uma catástrofe natural, como um terramoto ou uma inundação, qual é o vosso primeiro pensamento? Onde está a comida ou a água potável? Ou será onde estão os meus pais e/ou filhos e/ou esposa/marido?
E se deixam de receber notícias de alguém que amam e começam a temer pela sua vida, conseguem sentir fome? Sede? Vontade de dormir? Medo de se meterem num bairro perigoso quando o vosso ente querido pode estar lá caído e em perigo de vida? Não, certamente que o único pensamento é descobrir onde está quem amam e trazê-lo para casa, são e salvo.
No caso das crianças, quando se sentem ameaçadas o seu instinto é correr para os seus vínculos/protetores principais: os pais ou quem desempenhe esse papel. O instinto é correr para aqueles que os fazem sentir seguros.
Já pensaram porque algumas crianças conseguem brincar alegremente em cidades destruídas pela guerra, entre batalhas? Porque elas não avaliam o perigo olhando para o mundo que as rodeia, mas sim para os olhos daqueles que a natureza designou como seus cuidadores. E se os olhos retribuem um olhar de “está tudo bem” mesmo no meio de um bombardeamento, a criança sente-se segura, independentemente de tal ser real ou não.
Já agora, sabiam que as crianças londrinas, escondidas nos bunkers durante os bombardeamentos alemães da II Guerra Mundial apresentavam níveis menores de ansiedade do que as crianças de hoje nas suas rotinas do dia-a-dia, mesmo em plena era pré-COVID? Todas as explicações que os investigadores encontram para tal fenómeno aparentemente paradoxal têm um ponto em comum: a diferença na perceção de segurança entre as crianças de hoje, nas suas rotinas diárias, e as crianças inglesas numa cidade a ser bombardeada. Muitas crianças de hoje sentem-se mais inseguras que as crianças da guerra. Porquê? Continue a ler.
Quando uma criança se sente ameaçada o instinto é correr para quem elas percecionam como seus protetores, ou simplesmente olhar para a sua postura verbal ou não verbal em busca da resposta à pergunta: estou segura?
Mas o que é que acontece se aquele ou aquela que a criança perceciona como protetor é o mesmo ou mesma que a criança perceciona como ameaça?
Medo sem resolução.
Medo sem capacidade de fuga ou combate. Medo que apenas pode ser reprimido, retirado da consciência para não causar danos maiores, como doença mental ou até morte. Medo que desaparece da consciência mas fica registado na bioquímica de um corpo que não esquece.
Quando o protetor é também aquele que ameaça, como no caso de um pai que abusa de uma criança ou uma mãe alcoólica, e num contexto em que a criança não se sente segura com mais ninguém para contar o que se passa, o medo fica registado no corpo e longe da consciência.
E o que é que acontece então? Cada vez que ao longo da vida desta criança ela se sentir ameaçada, a sua bioquímica e passagens neuronais vão reagir tal como se estivessem de novo no momento em que o pai chegou a casa bêbedo e a molestou no quarto, sem que ela pudesse fazer nada para o impedir.
E tal como a experiência de condicionamento clássico que o psicólogo John B. Watson (um dos fundadores do Behaviorismo) realizou com o bebé Albert demonstrou, o que começa como um medo concreto (um coelhinho de peluche branco) facilmente se generaliza para outras fontes de medo (qualquer item de cor branca). Da mesma forma, o barulho que o pai alcoólico fazia ao entrar em casa e antes de se dirigir para o quarto e molestar a criança, pode generalizar-se para qualquer barulho desconhecido, ou os gritos de um pai violente pode generalizar-se para qualquer inflexão de frustração na voz de alguém.
E para o resto da vida situações banais do dia-a-dia poderão provocar reações internas num indivíduo como se ele estivesse perante um cenário de vida ou de morte e sem que esse individuo perceba porque passou de um estado funcional a um estado disfuncional numa fração de segundo e sem que nada pareça ter acontecido.
É como o flashback que um veterano de guerra com stress pós traumático sofre quando o fogo de artifício ou o disparo do tubo de escape de uma carrinha o leva de volta a um cenário de guerra e todo o seu corpo reage como se fosse a guerra o presente e ele nunca tivesse regressado à segurança de casa, são e salvo.
Mas se o veterano de guerra, após passado o flash back, consegue ter a consciência mental de que já não está mais na guerra, o mesmo não se pode dizer de muitos flashback emocionais provocados por antigos traumas de vínculo.
A maioria das pessoas que sofrem de trauma de vínculo não possui qualquer noção que está a sofrer de um flashback emocional quando tal acontece. A maioria das pessoas que sofre de trauma de vínculo não possui qualquer ideia que o seu corpo vive no passado, reage a estímulos presentes como se fossem estímulos de passado, tal como um veterano de guerra reage ao fogo de artifício como se fossem disparos de artilharia inimiga.
E o trauma de vínculo é uma epidemia na sociedade moderna. Por isso as crianças de hoje acusam níveis de cortisol e adrenalina (ansiedade) superiores aos níveis de ansiedade das crianças inglesas em plenos bombardeamentos da II Guerra Mundial.
Pais com trauma de vínculo perpetuam a dinâmica, tal como muitos dos pedófilos foram eles mesmos crianças abusadas.
É uma herança geracional que é premente quebrar. Mas em contrário vivemos circunstâncias que a acentuam.
Sendo a escola online uma delas.
A mãe a que eu hoje assisti a traumatizar a filha durante uma aula online é uma boa mãe, não estou aqui para a julgar de qualquer forma ou feitio.
É provavelmente uma mãe com os seus traumas de vínculo. Quando a filha falha em responder às perguntas colocadas pela professora, a mãe torna-se um pouco mais austera, mesmo que sem passar das medidas.
Agora imaginem: temos uma criança em stress (com medo) perante a ideia de falhar em frente da professora e restantes colegas, possivelmente até incapaz de corresponder às expetativas colocadas por ainda não ter adquirido, nessa área, a maturidade exigida para tal.
Perante a sensação de medo causada pela exposição a uma situação onde não é capaz de ser bem-sucedida, o instinto diz-lhe que procure refugio, equilíbrio no seu protetor, no seu vínculo principal. Mas neste caso o protetor (a mãe) faz parte da ameaça. Então, perante um cenário de medo sem resolução a bioquímica e os circuitos neurológicos da criança entram em curto-circuito e reprogramam toda a capacidade física e mental daquele ser responder a futuras ameaças.
No caso desta criança já é possível ver o apagamento temporário do córtex pré-frontal responsável pelo raciocínio lógico e resposta rápida. Talvez já seja também uma criança com obstipação crónica e crescerá para ser um adulto com imensas dificuldades digestivas que ninguém consegue explicar.
Na realidade a obstipação e a paragem digestiva são facilmente explicáveis quando percebemos que em caso de perigo de vida, comer ou fazer as necessidades é um luxo perigoso. Descendemos do homem das cavernas, e nenhum animal em fuga pela vida faz uma pausa para comer ou deixa marcas corporais que permitam ao ser predador segui-lo.
É o que também acontece com uma mãe a amamentar que recebe uma notícia assustadora. O leite não seca (ao contrário do que diz a sabedoria popular). Mas a sua saída fica imensamente dificultada perante o instinto de preservação da vida, que se falasse gritava “foge, corre pela vida e não deixes qualquer rasto; não pingues leite para não seres farejada e apanhada; quando estiveres a salvo voltas a amamentar).
O problema é que a maioria dos perigos experienciados atualmente não passam com uma fuga para lugar seguro. E se o perigo que nos ameaça é a rutura do vínculo (rutura do relacionamento) com aqueles que nos protejam e amam, como posso eu fugir?
Sim, eu sei. Ser severa com um filho ou filha que se recusa a participar na aula é muito diferente de ameaçar abandona-lo (a) ou deixar de o amar.
Mas isso é a nossa perceção, será a dele ou dela?
E mesmo que racionalmente os nossos filhos saibam que os amamos, o que sentem a nível visceral? O que lhes diz o cérebro emocional, o sistema límbico? Acham mesmo que é no racional que vivem as crianças quando a natureza programou esta parte do cérebro para se desenvolver tardiamente e apenes ficar completamente desenvolvida após os 20 anos?
Não estou contra a escola online nem é disso que aqui tento falar. Apenas alertar para uma urgência de educar os pais, professores, políticos e sociedade em geral para o que se passa por detrás das cortinas do que vivemos atualmente a com consciência tomar mediadas para prevenção de traumas.
Apoiemos os pais e pouparemos milhares na saúde futura dos filhos. Mas apoiemos com conhecimento de causa, percebendo as dinâmicas que movem os seres humanos, o que nos quebra ou dá resiliência. E não apenas baixando a febre num caso de pneumonia, que é o que eu vejo fazer-se atualmente, perdoem-me a frontalidade.
Muitas outras situações da vida encaixariam no que vou partilhar, pois as dinâmicas são geralmente transversais a diversos contextos, mas é neste que me vou focar: a escola em casa.
[i] Professor clínico de psiquiatria na Faculdade de Medicina da UCLA, diretor executivo do Mindsight Institute e escritor de inúmeros livros educativos para pais e terapeutas, inclusive o famoso “A mente em desenvolvimento, para uma neurobiologia de experiência interpessoal” – leitura obrigatória ou pelo menos altamente recomendada a todos os estudantes das mais conceituadas Faculdades de Psicologia de todo o mundo.
[ii] Psiquiatra, autor, pesquisador e educador sediado em Boston e especializado em stress pós traumático.
Publicado no site https://mundodeparentalidade.com/
Márcia Carneiro – Escrevo, porque escrever me ajuda a pensar, a sentir, a integrar. Escrevo o que me vem à mente, sem filtro nem censura e sem certo ou errado. Escrevo para mim, para me conhecer, perceber, encontrar. E partilho porque acredito que a descoberta de quem somos, da nossa essência, do nosso verdadeiro eu, passa indubitavelmente pela aceitação do nosso ser como um todo, sem nada renegar e pelo ato carinhoso, vulnerável e corajoso de assim nos mostrarmos aos outros.
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