Eu poderia refletir aqui sob diferentes aspectos das fronteiras. Escolhi o mais pertinente pra mim – a fronteira da minha casa. Não falo aqui daquelas fronteiras distantes de mim, como as divisões culturais ou geográficas entre países e culturas. Falo das fronteiras da minha casa, do meu território, do meu chão, da minha experiência de vida.
Falar de fronteiras é um desafio, sobretudo quando as redes sociais e a internet, parecem sugerir que elas não existem mais. Falamos com todas as partes do mundo ao vivo, ou não, e isso nos dá a ilusão, ou a simulação de que não existem mais fronteiras. Esse empoderamento falso nos habilitou ao megalomanismo desenfreado. Podemos acessar uma biblioteca em Londres e ao mesmo tempo contemplar, ao vivo, um dos mares da terra em câmeras instaladas pelo planeta. Essa ideia de que não há mais margens ou fronteiras está na minha mão e na sua mão. Em apenas pouco mais de 20 centímetros quadrados parece que temos o mundo.
Visto assim, o mundo nos é apresentado em uma margem tão diminuta quanto o tamanho de um inseto e nós passamos a acreditar que o mundo tornou-se pequeno de fato. Mas, por mais que isso pareça um absurdo, nos seguimos crendo que temos o ilimitado na palma de nossas mãos. E, se assim o é, por que se preocupar se pra tudo eu posso acessar, com o dedo? Pra entender uma doença e encontrar a cura, o dedo. Pra achar um novo amor e espantar a solidão, o dedo. Pra escolher o que comer e ter a comida na porta da sala sendo entregue, o dedo. Pra produzir dinheiro e receber, o dedo. E, pra matar saudade e dizer que ama, o dedo. Diluímos as margens das relações sociais na mesma velocidade que diminuímos as distâncias geográficas. Se eu posso entrar em qualquer lugar do mundo por conta da dissolução das fronteiras, também posso ser qualquer coisa, porque as fronteiras não existem mais. Essa é a delusão do homem moderno.
Para avançar um pouco nessa direção, trago uma leitura um tanto antiga, mas muito atual. “A poética do espaço” (La Poétique de l’Espace) é um livro de 1958, escrito pelo filósofo e poeta Francês Gaston Bachelard (1884-1962), que reflete sobre a importância e o impacto do espaço do habitar no ser humano. O livro é simplesmente uma jóia preciosa do século passado, e, apesar de ter sido escrito lá atrás, parece que as páginas estavam falando dos dias atuais.
Nestes escritos, Bachelard sugere um modo para analisar algo (a imagem poética) que deve ser percebida na ausência de um método ou de um conhecimento. Ou seja, não é necessário saber, apenas sentir, pra se dizer algo ou simplesmente pra se viver de algo. Defendendo que “a imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber. Ela é dádiva de uma consciência ingênua” (p.195). Ainda na introdução o autor faz uma breve explicação de cada capítulo (dez no total), e termina por revelar o seu objetivo: “No presente livro, o nosso campo de exame tem a vantagem de ser bem delimitado. Queremos examinar, com efeito, imagens bem simples, as imagens do espaço feliz” (p. 196).
Embora o autor fale de fronteiras ao mencionar que o livro é “bem delimitado”, o que ele propõe – examinar imagens de espaços felizes não tem margem alguma. Um objetivo aparentemente simples mas que encontra hoje uma dificuldade gigantesca.
Eu perguntaria a você: quais são os espaços que você habita, ou frequenta, que é ocupado por felicidade?
Vejamos alguns exemplos. Você já reparou nas salas de espera dos aeroportos o que as pessoas fazem? Usam o dedo pra se deslocarem de um lugar para o outro e não chegarem a lugar algum. Nas salas de espera a palavra espera dá o tom. Todos com seus celulares esperando suas pontes pra os levar a algum lugar estão também à espera de algo sem forma, sem cheiro e sem sabor. Ali não é e não será nunca o espaço pra gente feliz. Assim sendo, sem gente feliz o espaço também não se torna feliz. Temos de fato um lugar onde não se está autorizado o viver da felicidade, apenas da espera.
Você já observou nos restaurantes as famílias chegando para o almoço? A primeira coisa que vemos é um adulto colocar uma tela, celular ou tablet, para que a criança possa se entreter. Os adultos não demoram tanto pra que cada um, enquanto esperam pela comida, também se entretenham nas diluições das fronteiras e margens a que os celulares os levan. E, nessa experiência de vida, o ser humano tem colocado seu tempo, sua energia e sua territoridade existencial. Nós não podemos mais ter em mente a imagem de lugares felizes porque eles simplesmente não são contemplados por nós. Nas nossas mentes esses lugares vão sumindo pouco a pouco e tudo vai se tornando igual e sem vida. No aeroporto estamos no não-lugar do celular. No almoço ou jantar estamos no não-lugar do celular. E nos diferentes momentos do dia estamos nos não-lugares onde os nossos celulares nos levam e lá nos deixam. Estamos naufragados em um mar de isolamento humano como nunca tivemos. O problema disso tudo não é o isolamento e a nossa falta de relações sociais. O problema é que sem os espaços felizes não temos memória. Memórias afetivas. Memórias restaurativas. Memórias perceptivas. E sem memória não temos o passado como ar, não temos o presente como terra firme e não temo o futuro como caminho a ser percorrido.
O grande problema da ausência de fronteiras é que essa ausência não nos coloca um lugar pra habitar e sem habitação somos seres errantes, sem eira nem beira.
Todo homem precisa de um lugar para habitar. Me parece que até mesmo os animais também necessitam de um. Mas, a tecnologia nos rouba nossas possibilidades de habitar e de viver em nosso lugar.
Sobre isso, Bachelard afirma que “A casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz frequentemente, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (p. 200). Significa que todos os sonhos, as lembranças, os desejos, os medos e solidões que sentimos estão conosco, na casa: “a casa é o lugar mais poderoso de integração para os pensamentos, as lembranças, e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio.” (p. 201). Com esta frase Bachelard deixa-nos intuir que a casa é “um corpo de sonhos” (p. 207); um lugar que nos acolhe em nós mesmos, um lugar onde o medo e a solidão é constitutiva: “Feliz a criança que possui, realmente, as suas solidões!” (p. 207). Bachelard sugere que a casa é um lugar que permite o devaneio. E é nesse devaneio, de diferentes vivências do espaço íntimo da casa, onde somos capazes de conhecer o nosso verdadeiro eu.
Aqui o autor traz a ideia mais cara pra humanidade hoje – viver a experiência da solidão. Não só aquela solidão de estar fisicamente sozinho, mas todas as formas de solidão. Quando não temos o que queremos, a frustração é um experiência de solidão. Quando não podemos fazer o que desejamos, a não realização do desejo é outra experiência de solidão. Mas, de solidão em solidão, vamos descobrindo que o humano não terá tudo que quer ou que deseja e é justamente isso que nos permite habitar, mesmo sozinhos, um espaço no mundo. No meu mundo falta isso ou aquilo. Mas no meu mundo ainda tenho isso e aquilo. Somos múltiplos exatamente como é o universo. Eu tenho em mim moléculas de água exatamente como tem o mar, as plantas e os animas. Então, eu, as plantas e os animais, estamos sempre unidos. Nenhum de nós está só. Isso é uma grande verdade a ser contemplada, mas pra isso acontecer é preciso a solidão do pensamento. A solidão da escuta. A solidão da angústia. Mas, as gerações não querem estar neste espaço porque as telas permitem sair e entrar em diferentes espaços ininterruptamente. E assim, nesse corre-corre desenfreado, seguimos loucamente tentando achar um lugar no mundo para habitar. São os seres sem casa, apesar de estarem dentro delas em grandes condomínios cercados ou nos barracos dentro de lamaçais sem tamanho. A falta de habitar os espaços é nossa maior derrota diante da tecnologia. É essa nossa luta de resgate junto às crianças, os jovens e a nós mesmos. Preciso voltar pra casa. Precisamos de nossas margens, nossas fronteiras e nossos contornos. Faz-nos bem demais saber um pouco de nosso tamanho e de nossa dimensão. As nossas fronteiras internas nos definem e é justamente essa a nossa maior perda diante do que aí está.
Prof. Dr. Geraldo Peçanha de Almeida é psicanalista pela Sociedade Internacional de Psicanálise de São Paulo. Especialista em Educação Infantil e Pós-graduado em TEA – Transtorno do Espectro Autista pela PUC – Paraná. É pedagogo pela UNESP – Universidade Estadual Paulista, de São Paulo. Mestre em Teoria Literária pela UFPR – Universidade Federal do Paraná e Doutor em Crítica literária pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. Atuou como palestrante no Congresso Nacional Brasileiro em 2023 a convite da Comissão de Saúde e Políticas Públicas para o Autismo. É responsável pela criação e implantação de Centros de Atendimento às Crianças e Jovens com Transtornos do Neurodesenvolvimento em diferentes municípios do Brasil. Fez estudos de imersão em Reggio Emilia, na Itália, em 2024. Atualmente é Biomédico em formação. É autor de mais de 70 livros, entre infantis, livros para educadores, livros para pais e livros de autoconhecimento. Têm trabalhos internacionais com professores e crianças na Alemanha, Itália, Áustria, Bolívia e no Japão. Implantou na África, em Moçambique, um Programa de Leitura e escrita. Fez estudos de aperfeiçoamento em Educação Especial em Cuba. Tem 31 anos de experiência em educação de crianças e jovens e faz palestras em todos os Estados do Brasil. Fundou o Projeto Pólen, em Curitiba no Paraná, do qual é diretor. Desde 2020 passou a integrar a Academia Internacional de Literatura Brasileira, com sede em New York, onde tem Paulo Freire como patrono.
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