Resumo
O artigo aborda o modo com as telas e outros modos de inovação produzem efeitos, duradouros ou passageiros, no imaginário e na subjetividade dos indivíduos. Passando pelos efeitos de aglutinação do real e do virtual suscitados por uma tela do século XVII e por duas icônicas referências advindas das telas do cinema, chegando à onipresença das telas e dos conteúdos virtuais na atualidade, propomos pensar – à luz da Psicanálise com Freud e Lacan – as possibilidades e os desafios que a cultura digital impõe aos laços sociais e, em especial, ao desenvolvimento infantil.
O quadro A família de Felipe 4º, mais conhecido como As meninas, de Diego Velásquez (1599-1660), é uma enigmática composição que joga com os limites entre realidade e ilusão. A obra, com 3,16m de altura e 2,76m de largura, estampa a infanta Margarita rodeada por sua corte de criados, além do próprio artista espanhol que se autorretratou colocando-se dentro do quando, pintando uma tela. Nessa cena, não sabemos quem estaria sendo representado pelo pintor, senão por uma pista: no fundo do quadro encontra-se um espelho e nele há o reflexo de um casal de reis, para muitos estudiosos, o rei Filipe IV e sua esposa Maria Ana da Áustria.
O efeito formidável reside em que devemos supor que o casal real está posando para o Velázquez da cena representada dentro da própria tela, do lado de fora do grande quadro, mais ou menos no lugar que ocupa um espectador de tal obra. Todavia, o olhar dos personagens, inclusive do pintor e da infanta, parece encarar que contempla a tela e, por alguns instantes, quem a olha geralmente se sente dentro dela, como parte da impressionante pintura. Quando isso ocorre, cada espectador acaba por se colocar no lugar do casal de reis, tornando-se o centro das atenções de uma cena que, na realidade, não existe senão como uma obra de arte.
Esse breve aceno sobre como nossa mente pode se confundir diante de uma mera representação virtual nos permite avançar sobre um ponto chave acerca do desenvolvimento infantil. Com Freud e Lacan recordamos que inicialmente uma criança não se vê como um corpo integrado, mas como uma extensão do mundo e, especificamente, do corpo materno. Não é incomum testemunharmos um bebê se surpreendendo, por exemplo, com a descoberta do próprio pezinho, ou de outra parte do próprio corpo.
Aos poucos é que a criança se perceberá como um indivíduo único. Lacan retrata esse aguardado momento da descoberta que o bebê faz de si, por um esquema chamado o estádio do espelho, descrevendo que a partir da idade de seis meses (1998, p. 97) há um momento em específico, no qual o bebê se surpreende como a própria imagem no espelho, ou em outro aparato especular, e se reconhece como sujeito. Nessa ocasião é comum que testemunhemos um júbilo por parte da criança, seguido da procura pelo olhar de um cuidador que lhe confirme naquele instante, que o que ela vê refletido não seria um outro bebê, mas ela mesma, sem se dar conta ainda de que se trata, em verdade, de sua própria imagem.
A experiência diante da pintura de Velázquez, mesmo que seja efêmera, se aproxima do acontecimento representado por Lacan em seu estádio do espelho, já que em ambos os casos é de nossa imagem narcísica que se trata. No caso dos bebês, não por acaso, um comportamento facilmente observado é que quando se percebem como gente, vário deles assumem o lugar de pequenos monarcas no seio da dinâmica familiar.
É claro que a construção da própria subjetividade se inicia antes do que se passa no estádio do espelho e a chegada desse momento depende, sobretudo, do modo como cada bebê e acolhido e cuidado. Em suma, o que está em jogo é o olhar que advém de outrem, em especial do par parental. Em seu texto sobre o narcisismo, o pai da Psicanálise nos fala que, habitualmente, as crianças não apenas são investidas de atenção material e de afetos, mas também do narcisismo dos próprios pais, com suas fantasias em relação aos filhos, resultando no desejável surgimento do que o Freud e nomeia como “sua majestade, o bebê” (1990, p. 171).
Essa é uma fase importante do desenvolvimento humano que possibilita ao bebê sua autoidentificação como um sujeito único e não mais como parte ou complemento do corpo de sua mãe. Nessa etapa, o narcisismo leva a criança desejar todo o amor e toda a atenção. Essa é também uma fase de grande incremento de fantasias que ajudam a lidar com a falta de uma suposta onipresença que tanto lhe acalentava, enquanto se percebia como totalmente alienado ao corpo materno. A identificação com personagens de super força e enormes poderes, que ele passa a conhecer por meio de histórias contadas e em cenas da TV, alimentam em muito o imaginário das crianças, ainda incapazes de distinguir perfeitamente ficção e realidade. Quem não conhece uma história de pequenos voadores aterrissando do alto do sofá no chão da sala?
Daí em diante, será preciso ensinar a criança sobre o reconhecimento e a aceitação da realidade, introduzindo-a na dinâmica da vida em sociedade, seus limites e suas possibilidades. Nesse processo fundamental, a Psicanálise, assim como outras abordagens, se dá conta da relação direta entre o desenvolvimento infantil e o encontro com a alteridade, por meio dos laços que vão sendo estabelecidos com os outros, especialmente em seu núcleo familiar e, no segundo momento, com os pares. A criança é formada e se constitui como sujeito por meio dessa dinâmica que se traduz num constante ver e do saber-se visto por um outro. É igualmente importante que a criança lide com a presença-ausência desse outro familiar, contado que elabore tanto suas próprias inquietudes. quanto a incompletude do outro, incapaz de lhe satisfazer a todo tempo.
Frente ao exposto, poderemos nos perguntar sobre as consequências das mudanças nas relações familiares impostas pela vida moderna, destacando a precariedade dos tempos de qualidade na convivência familiar. Há ainda uma recorrência generalizada do uso excessivo de tela, dentre televisores, smartfones e tablets, entre outros meios, pela aposta no poder sedutor e aparentemente apaziguador que as telas exercem, seja como forma de distração, seja que para evitar e tamponar as crises de choro e momentos de ansiedade.
Todavia, se os olhares são cada vez mais capturados pelo deslumbramento que o mundo virtual produz, o que se passa com a dinâmica do ver/saber-se visto? Convém lembrar que em muitos casos, são as crianças precisam competir com as telas pela atenção dos pais. De fato, estamos observando novas tendências acerca da qualidade relacional, muitas vezes acompanhas de uma tendência ao isolamento, que se deslocando dos primeiros anos do desenvolvimento infantil, chega ao ambiente escolar e posteriormente à vida adulta.
Há aí um certo paradoxo, uma vez que nunca se viu tamanha possibilidade de comunicação e conexão entre as pessoas como nos tempos atuais. De um lado, vê-se a união de gente com diferentes expertises, grupos que se aglutinam em torno de uma temática, uma causa, ou simplesmente em nome do entretenimento. Isso sem nos esquecer do compartilhamento inigualável de conhecimento. Por outro lado, torna-se cada vez mais comum a formação de bolhas e de condomínios digitais, nos quais interessa transmitir apenas uma visão da realidade que não conflitue com os interesses de seus membros. Nesses casos, as telas, no lugar de permitirem o convívio com a diversidade, nos confirmam em nossas próprias ilusões e fantasias, nos expondo sobretudo a quem pensa como nós.
É fato que ainda estamos catalogando e buscando compreender os efeitos da revolução digital em curso, mesmo já estando às voltas com a ampliação do uso da inteligência artificial e de seus impactos. Em muitos casos, nos surpreendemos com o que ouvimos (e aprendemos) dos chamados nativos digitais. Numa entrevista recente, o ator Keanu Reeves contou que em vista do lançamento do novo filme da franquia Matrix, precisou explicar o conceito por trás da trilogia original para um grupo de adolescentes. Disse que a questão fundamental do filme era o entendimento do que de fato é real e o que é o virtual. Afinal, se a tecnologia simulava tão bem a realidade dentro da Matrix, como fazer para distinguir realidade e ficção? Para seu espanto, uma das adolescentes lhe afirmou que não entendia esse argumento do filme pois, para ela – uma nativa digital – era supérfluo saber distinguir o real do virtual.
O psicanalista Christian Dunker nos recorda que, como em qualquer processo de mudança de paradigma, seria ineficaz especular sobre os efeitos de uma mudança enquanto ela ainda está em franca implementação. Ele nos lembra, por exemplo, que no início do século passado, a descoberta da radioatividade trouxe grandes avanços para a medicina e outras áreas, não sendo imediatamente acompanhada de um conhecimento sobre riscos que ela continha. A ingestão de substância radioativas chegou a ser usada para a cura de enfermidades. Mais de uma década se passou para que queimaduras sofridas e outras sequelas se tornassem evidências dos ricos daquela nova descoberta, levando ao estabelecimento de um uso controlado da radiação.
A Psicanálise, desde Lacan, procura ler as profundas mudanças que, pelo menos nos últimos 60 anos, tem ocorrido na organização da vida e na dinâmica dos laços sociais, situando como parte delas a revolução digital e seus efeitos. Há uma aposta por parte de uma considerável parte dos psicanalistas de que, mesmo diante de novos tempos, o processo de emancipação dos sujeitos transita pela percepção e aceitação paulatina da realidade, seus limites, impossibilidades e sua incompletude. Isso implica um trabalho de elaboração pessoal e a capacidade de distinguir as próprias ilusões e fantasias com as quais, desde o início de sua constituição, cada sujeito se engoda.
Frente a isso e sem fazer um juízo de valor sobre os novos tempos, parece sensato reafirmar a importância do encontro com a alteridade, expresso pela dinâmica do ver/saber-se visto no desenvolvimento da subjetividade, especialmente nos primeiros anos da infância. Nesse aspecto, haveria um certo perigo em tirar proveito do fascínio causado pela realidade virtual, usando-o como principal estratégia para o entretenimento, especialmente se essa solução vier como um tamponamento das dificuldades de adaptação inerentes da constituição dos sujeitos e da aceitação de que a realidade se constitui também como privação. Isso nos coloca diante da tarefa, tanto infindável, quanto multifacetada, que inclui ensinar limites de tempo de tela e o uso responsável dos bens digitais, seja no ambiente da casa, quanto nos espaços de convivência, especialmente nas instituições educacionais.
Para concluir, podemos recordar ainda uma cena extraída das telas do cinema. No primeiro filme da trilogia de Toy Story, há um momento ápice em que o personagem Buzz, um brinquedo que acreditava ser um astronauta de verdade, descobre ser apenas um boneco, quando assiste a um comercial de brinquedos. Isso produz nele um momento de crise, que uma vez elaborada o conduz a um novo entendimento sobre si e, em especial, sobre seu papel na vida das crianças.
De modo inverso, um uso sempre maior de tela para alegados fins de distração/diversão, tem como objetivo tamponar as frustrações e as crises existenciais provenientes das inquietações frente aos limites e desencontros com que a vida real nos brinda, desde os primeiros momentos de nossa constituição. Se, como vimos, essa alienação no meio virtual, ao evitar momentos bem incômodos e inconvenientes, traz consequências ao desenvolvimento infantil, quem sabe não nos dediquemos sempre mais, na medida do possível, em proporcionar às crianças de hoje, encontros e vivências reais, com suas alegrias, frustrações e desventuras, mesmo que para isso, precisemos combinar tudo isso usando um smartfone.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo – uma introdução. In: Edição Standart. (v. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Texto originalmente publicado em 1914).
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. Rio de Janeiro: Editora Zahar: 1998. (Comunicação feita em julho de 1949).
Entrevista de Keanu Reeves disponível em: https://bit.ly/4bsuinP
Toy Story [DVD]. Pixar Animation Studios, 1995. (81 min.), son, cor, legendado.
Cláudio Toledo – Psicanalista clínico. Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), licenciado pela Congregazione per L’educazione di Roma (IT). Palestrante e pesquisador em teoria psicanalítica, Ética e Filosofia da linguagem.
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