OS PRIMEIROS MIL DIAS E A TERCEIRIZAÇÃO INFANTIL

A gestação e os primeiros dois anos constituem um período que é muito importante para o resto da vida de uma pessoa. Esse período, com as 40 semanas de gestação (280 dias em média) somados aos dois primeiros anos de vida extrauterina (365 X 2= 730) dias, constituem o período que chamamos de 1000 dias (e que corresponde aproximadamente a 1010).

Nos primeiros 1000 dias da existência há maior velocidade de crescimento celular e aumento proporcional de massa corporal, principalmente cerebral, com milhares de neurônios se desenvolvendo, se conectando.

E por que é tão importante essa fase da vida? Principalmente porque é uma das fases da existência em que há a maior velocidade de crescimento celular e aumento proporcional de massa corporal, principalmente cerebral, com milhares de neurônios se desenvolvendo, se conectando (fazendo as chamadas sinapses) e gerando contatos fundamentais ao desenvolvimento neurofisiológico, cerebral do corpo humano.

Para se ter uma ideia, o bebê humano nasce em média com cerca de 100 bilhões de neurônios e um adulto acaba, com 20 bilhões deles… e por que isso acontece? Por causa de um fenômeno biológico chamado de poda neuronal, quando a maioria dos neurônios desaparecem e permanecem apenas aqueles que foram estimulados e levados a permanecerem ativos, fazendo mais sinapses, algumas vezes milhares e milhares de vezes. Isso acontece por conta da chamada plasticidade cerebral e capacidade de o cérebro humano ir priorizando as células nervosas mais importantes para o seu desenvolvimento.

Esse conhecimento já basta para entendermos por que esse período, os primeiros mil dias, são fundamentais para a criança e transformando-se numa época em que as relações familiares, principalmente da mãe e dos outros familiares que convivem próximos a ela, é importantíssima. Sua importância se dá frente a necessidade da criança receber estímulos sonoros, auditivos, visuais, táteis, etc. Por isso, os pediatras atualmente insistem tanto no contato físico, nos beijos, nos abraços e nos carinhos com as crianças, principalmente com os bebês.

Um bebê ou uma criança pequena, principalmente antes de completar os dois anos pode ter até depressão ou estresse agudo, se não for bem atendido em suas necessidades básicas.

Um outro fenômeno a ser conhecido, relaciona-se exatamente com as atitudes contrarias que algumas famílias podem ter, inadvertidamente, com seus bebês, privando-os dessa atenção especial tão necessária. Sabemos que um bebê ou uma criança pequena, principalmente antes de completar os dois anos pode ter até depressão ou estresse agudo, se não for bem atendido em suas necessidades básicas. Hoje insistimos muito em ensinar aos pais e cuidadores que um bebê que chora, precisa ser acolhido, acalentado, consolado […] pois o sofrimento agudo pode liberar hormônios que se forem produzidos durante um tempo mais longo, cronicamente, podem sim trazer problemas cerebrais dificultando essas conexões cerebrais tão importantes para o desenvolvimento. As sinapses podem sofrer alterações e o cérebro ter sofrimento real se o abandono, a falta de carinho, de atenção, de afago materno   existirem, isso pode, cronicamente, resultar em uma situação que classificamos como estresse tóxico precoce infantil e este tem consequências que podem ser muito graves. Aquela atitude que há algum tempo ouvíamos com frequência de pessoas que diziam: “Deixa o bebê chorar. Isso é birra. Ele precisa aprender a não ficar toda hora querendo colo. Se você ficar toda hora atendendo e pegando esse bebê no colo, ele vai se acostumar e aí você não vai ter mais sossego”. Ledo engano. Isso é muito ruim para os bebês e crianças nessa faixa etária, porque nesse período, eles precisam principalmente de atenção, colo, afago. Reforça-se que se a criança não tem essas necessidades atendidas ficam cronicamente estressados, podendo facilmente ter depressão infantil, e ou desenvolver o estresse tóxico com as prováveis dificuldades cerebrais que acabam por se transformar em dificuldades de desenvolvimento neurofisiológicas e neuropsicológicas, com consequências para o resto da infância e as vezes para toda a vida.

São inúmeros os problemas de desenvolvimento de crianças que podem estar associados a esses fenômenos de falta de atenção e carinho. Pode-se exemplificar apontando as dificuldades escolares futuras, agressividade, problemas emocionais, entre outros.

Vi muitas vezes famílias desesperadas sem saber como lidar com suas crianças, e esse despreparo, geralmente associado a falta de conhecimento do que significa ter um filho […] do significado do que hoje chamamos de” EXtero Gestação”, que significa o conhecimento de que o bebê humano não nasce, com certa independência para se alimentar, andar e etc.

Durante a maior parte de minha vida profissional (e lá se vão mais de 50 anos atendendo crianças e famílias), vi muitas vezes esses equívocos acontecerem, com famílias desesperadas sem saber como lidar com suas crianças, e esse despreparo, geralmente associado a falta de conhecimento do que significa ter um filho e  também a ignorância a respeito do significado do que hoje chamamos de “EXtero Gestação”,  que significa o conhecimento de que o bebê humano não nasce como a maioria de outros mamíferos, com certa independência para se alimentar, andar, etc. Não. O bebê não é independente! O bebê humano passa os primeiros meses, particularmente, o primeiro semestre de vida, e alguns autores acham que pelo menos até os 9 meses de vida extrauterina, totalmente dependendo da mãe que o gestou e até não tem ideia de que são outro ser independente e pensam que fazem parte daquele outro corpo que o gerou. Há teorias muito interessantes que levantam a hipótese, que essa “EXtero Gestação” estaria substituindo um tempo em que as gestações humanas não eram só de 40 semanas (9 meses), mas sim períodos maiores. Essa hipótese, difícil de se comprovar, explica em parte a grande dependência dos nossos filhos e filhas que precisam de amamentação exclusiva ao peito pelo menos nos primeiros 6 meses de vida e, se possível, intercalando com outros alimentos, até os dois anos, e, porque são tão necessitados de atenção e presença.

Muitas vezes me pergunto como podemos ter pais (famílias) se constituindo tão desprovidos da compreensão de seu papel na gestação. Minha reflexão está no sentido de entender: será que é porque saíram muito precocemente do calor e do conforto do útero materno? Levanto assim uma hipótese a ser discutida e   compreendida diante de sua importância na formação do ser humano. Para conduzir minha tentativa de resposta criei a expressão “Criança terceirizada” e utilizo esse termo ao me referir àquelas crianças que não só nesse período, mas às vezes durante toda a primeira infância, pelo menos até os 5 ou 6 anos de vida, não tem a presença dos pais e são cuidados por pessoas, muitas vezes pagas, para fazer o papel de mãe e de pai.

Essa expressão “Criança Terceirizada”, às vezes choca e muita gente que assiste minhas conferências ou quando vê meus vídeos pelo meu Canal “Família amor e cuidado”, pelo Youtube, não gosta e prefere que eu use um termo “científico” que também criei e que chamo da “Síndrome da Ausência dos Pais”. E que Síndrome é essa? Chamamos de Síndrome em medicina ou em psicologia clínica a um conjunto de sinais (o que o profissional vê no paciente) e de Sintomas (o que o paciente sente).

Crianças terceirizadas são aquelas cujos pais não têm tempo ou não querem, cuidar dos filhos, designando outras pessoas para assumirem essa função.

Pois bem, explicado os termos técnicos podemos comentar as manifestações na prática. Essas crianças são aquelas cujos pais não têm tempo ou não querem, cuidar dos filhos, designando outras pessoas para assumirem essa função. Essa é uma ação que infelizmente está ocorrendo muito atualmente, pela situação das famílias, muitas vezes com problemas de separação ou com excesso de trabalho, com ambos os genitores saindo de casa cedo pela manhã e voltando só a noite e neste contexto acabam delegando as funções de cuidado, carinho e atenção a outras pessoas que não eles próprios. As consequências deste abandono são muitas vezes imensuráveis para a criança, conforme ditas anteriormente.

A “Terceirização Infantil” é um fenômeno em todas as classes sociais, com crianças sendo criadas por pessoas que não são seus verdadeiros pais e às vezes se esses cuidadores, que podem ser até competentes no sentido de alimentar, trocar as fraldas, passear e outras funções de cuidado, não são competentes emocionalmente mesmo que tenham uma atitude suave, persistente, afável e carinhosa e educacional – lhes faltam o vínculo afetivo da relação pais e filhos. Essa terceirização pode ter como consequências o surgimento de seres que não aprendem a importância do amor e de participar da vida com suavidade, simplesmente porque muitas vezes não receberam na idade mais adequada esses sinais de vida tão importantes na formação de sua personalidade.

Na minha experiência profissional vi muitas crianças sofridas e infelizes, tendo tudo de material que necessitavam, só não tinham participação e ajuda para resolver seus problemas emocionais. Escrevi vários livros sobre isso e posso nominar para quem tenha interesse em aprofundar-se na leitura:

1. A criança terceirizada. Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo (Editora Papirus).

2. Quem cuidará das crianças? (PAPIRUS).

3. Cuidado, afeto e limites. Uma combinação possível” (em parceria com Ivan Capellato). 

4. Filhos, amor e cuidados. Reflexões de um pediatra. (Papirus).

5. Como e porque amamentar (Editora CRV).

6. Criando: Reflexiones irreverentes sobre la pa/maternidad em espanhol, lançado no Chile em parceria com a psicóloga Cibele passos.

7. CRIAR: A educação dos filhos em tempos modernos. (tradução e adaptação do anterior para o português e aplicado aos pais brasileiros.) Também em parceria com a psicóloga Cibele Passos. Editora KIRION.

Todos esses livros que apresento acima tratam da importância que a infância tem para o resto da vida. Alguns estão já com várias edições. A criança terceirizada foi traduzida para o espanhol. E tenho ainda mais outros 6 livros sobre saúde infantil e relações familiares que não estão exatamente na mesma linha, mas próxima. Além de ser conferencista no Brasil e no Exterior, em minhas orientações e palestras foram produzidos vídeos e entrevistas com outros colegas sobre o problema da saúde infantil e da família e que se tornam um material para estudo e consulta. Por isso fico muito feliz em atender este convite da Escola de Pais do Brasil para expor minhas ideias sobre os primeiros mil dias e sobre a terceirização infantil.

 Prof. Dr. José Martins Filho – Médico pediatra, neonatologista.  Prof. titular Emérito de Pediatria da Unicamp. Membro e Ex-Presidente da Academia Brasileira de Pediatria (2013 a 2017). Ex-Diretor da Faculdade de Medicina. Reitor da UNICAMP (1994 e 1998). Youtuber no canal “família amor e cuidado”. Ex-Apresentador do programa Conexão Brasil, pela TV século 21. Foi fundador do Grupo Nacional de Estímulo ao Aleitamento Materno da SBP. Lutou pelo aumento da licença maternidade de três meses para quatro meses. Recebeu diversos prêmios em sua carreira em nível nacional.

Publicado na Revista do 57 Congresso Nacional da Escola de Pais do Brasil, Edição2021, p. 18-19.

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