CINCO RAZÕES POR QUE FICOU TÃO DIFÍCIL DAR LIMITES E O QUE VOCÊ PODE FAZER A RESPEITO

Nos últimos sessenta anos ocorreram mudanças sociais que alteraram profundamente as condições em que as crianças crescem e podem estar tornando mais difícil a tarefa dos pais de dar limites a seus filhos. São mudanças nos grandes ambientes sociais que abrangem escola, amigos, família, filmes, games, moda, enfim, todas as dimensões da vida de seu filho.

Embora tenham sido positivas, pois promoveram a liberdade e a busca da felicidade, essas mudanças redirecionaram a influência do ambiente social. Por isso cada vez mais cabe aos pais a função de promover empenho, compromisso e ética.

1. Da obediência ao direito de negociar

Até próximo a 1950 as crianças cresciam sob o domínio do medo. Nas escolas era frequente o uso da palmatória enquanto em casa apanhar de cinto era comum. Crianças só deviam falar quando perguntadas. O grande valor na educação era a obediência. As fábulas infantis costumavam fazer referência aos males advindos da desobediência: lobos, bruxas e seres malvados que por vezes devoravam aqueles que não seguiam as ordens dos pais. Crianças e adolescentes deviam honrar os mais velhos e as figuras de autoridade em geral. Ter medo era desejável e era a base do respeito. A meta da educação era submeter vontades individuais até a obediência total.

O valor central da educação não é mais a obediência, mas a capacidade de diálogo e escolha com responsabilidade.

Embora ainda seja assim em muitas partes do mundo, também há em uma boa parcela da sociedade, o desejo de que os filhos não tenham medo, que sejam ouvidos, que as escolas sejam amistosas e acolhedoras. O valor central da educação não é mais a obediência, mas a capacidade de diálogo e escolha com responsabilidade. Em todas as instâncias, inclusive nas empresas e na política, enfatizamos a participação, a democracia, a igualdade de direitos e o diálogo.

2. Dos deveres à busca da felicidade

Antigamente os votos parentais para o futuro dos filhos eram algo como: “Que minha filha case e seja boa mãe e esposa”; “Que meu filho seja trabalhador, que sirva à pátria, que tenha um bom emprego ou assuma a empresa familiar”. Ensinava-se a ter disciplina, a cumprir os deveres para com a família, o país, a igreja. O prazer individual era secundário, em primeiro plano estavam sempre os deveres. Almejar a felicidade pessoal era um egoísmo intolerável. “Autorrealização” era um termo estranho.

Hoje o discurso dos pais mudou para algo como: “Não me importa o que meu filho venha a escolher, desde que seja feliz e saiba ir atrás de seus sonhos.” Estamos dispostos a aceitar opções profissionais e sexuais, estilos de vida e locais de moradia os mais diversos para que nossos filhos sejam felizes. E, se possível, desejamos que tenham sucesso.

3. Da modéstia à diversão (consumismo)

Uma menina rica, um tempo atrás, teria algumas bonecas de porcelana pintadas à mão, alguns vestidos e um quarto decorado. Cresceria numa mansão sob o olhar severo da governanta e aprenderia prendas domésticas. Os grandes valores eram a modéstia e o recato. Ser mimado era inadmissível e havia pouco que consumir. Crianças pobres com frequência trabalhavam na roça ou em fábricas e sonhavam com doces e brinquedos. Pouco podiam se divertir, e quando podiam, as brincadeiras e os objetos eram improvisados.

Hoje uma criança pobre talvez dê um chilique no supermercado porque não quer balas de menta, mas de morango. Para todos há opções de consumo. Na classe média, elas crescem com a ideia de que diversão é consumir guloseimas, fazer viagens à Disney, brincar com eletrônicos. Não queremos filhos consumistas, mas achamos que “o sorriso de uma criança não tem preço”, de modo que nossos filhos acabam entrando na adolescência convictos do sagrado direito à diversão — e, portanto, ao consumo.

4. Do pertencer à comunidade ao pertencer à turma

Apesar de conviverem com irmãos, com a turma da rua e da escola, as crianças e jovens não formavam uma “subcultura de grupo”, tão demarcada para cada faixa etária. Crianças pobres ajudavam os adultos na roça ou nas tarefas domésticas e brincavam com crianças de várias idades. As ricas, sob vigilância, entre uma aula de piano ou esgrima, podiam brincar um pouco. Na escola se concedia pouco espaço à brincadeira. E a puberdade, para todos, era uma fase de preparo para a vida adulta, com muitas incumbências. A identidade do sujeito se formava com a família, a religião, os pais.

O fenômeno das mídias sociais e da vida virtual, que conectam ainda mais as subculturas jovens e permitem que eles socializem e se divirtam 24 horas por dia, reforçando a cultura de resistência dos adolescentes ao mundo dos pais.

Hoje socializar com “amigos” tem um grande valor. Desde cedo em berçários, creches, escolas, as crianças são estimuladas a fazer amigos, a ir a festinhas, a convidar os amigos para brincar, dormir na casa um do outro, ir a acampamentos e clubes. Entre os seis e os oito anos, já têm gírias próprias, brinquedos, músicas, roupas e programas televisivos preferidos, e os pais precisam se atualizar com os modismos para se conectar aos filhos. Entre os onze e os catorze, formam uma identidade de grupo que os diferencia dos adultos e das crianças menores. A referência passa a ser cada vez mais a opinião dos amigos, que, reforçada pelo marketing e pelas mídias, contrapõe-se aos adultos e idosos, que estão “por fora” (e não são mais, como eram até os anos 1950, eventual fonte de experiência, sabedoria e respeito).

Nos últimos dez anos, somou-se a isso o fenômeno das mídias sociais e da vida virtual, que conectam ainda mais as subculturas jovens num universo paralelo e permitem que eles socializem e se divirtam 24 horas por dia, reforçando a cultura de resistência dos adolescentes ao mundo dos pais.

5. Da automotivação ao ser motivado

Antes o ônus da motivação estava depositado nos filhos; hoje está nos adultos. Por exemplo, na infância, nossos avós aprendiam um idioma estrangeiro estudando trechos de literatura clássica e cabia a eles comparecer às aulas com vocabulário e gramática memorizados. Também cabia a eles lidar com os momentos de tédio da vida, que eram preenchidos com brincadeiras imaginárias, jogos e leitura. De forma geral, a motivação podia vir tanto do interesse e do desejo como do medo da repressão, da necessidade ou do tédio.

Hoje procuramos ensinar idiomas com métodos divertidos e que não exigem muito esforço mental. Igualmente tentamos aliviá-los do tédio colocando em cena a televisão, idas ao cinema, passeios, viagens de fim de semana, numa intensa programação de lazer. Contra o tédio, os adultos promovem um non-stop show. Contra o desinteresse e a desmotivação, os adultos buscam modos lúdicos de seduzir para a aprendizagem prazerosa. A criança, numa posição receptora, vê todos à sua volta se esmerando para motivá-la. Quando adolescente, já está viciada na hiperestimulação externa. Busca uma vida intensa, repleta de festas, viagens, namoros, companhia 24 horas por dia on-line, estudo e trabalho motivadores. Sem isso, mesmo jovens adultos podem sentir ansiedade, ficar deprimidos ou se drogar. A ideologia atual é que o sujeito seja motivado pelo prazer, curiosidade e interesse, ou competitividade, não mais por necessidade, senso de dever, ou esmero em fazer bem.

Podemos resumir as mudanças que ocorreram desde então em cinco novas mensagens que seu filho costuma ouvir hoje:

  • Nada deve ser imposto e sim negociado.
  • Sua meta na vida é ser feliz.
  • É seu direito se divertir sempre que não estiver estudando.
  • Socializar é fundamental; siga a turma de sua idade.
  • Reclame se estiver entediado ou desmotivado, os adultos sempre

  vão entretê-lo e motivá-lo.

Não que inexistam novos valores éticos que impregnam poderosamente o ambiente atual e também conquistam os corações e mentes de seu filho. Tornou-se lugar comum crianças genuinamente preocupadas com sustentabilidade, ecologia, solidariedade, bullying, vida saudável, enfim com temas ligados à qualidade de vida individual e social. Também aprendem a respeitar as diferenças, de gênero, de orientação sexual, étnicas, de classe e a conviver num mundo multicultural.

Ocorre que esses valores politicamente corretos muitas vezes não se interligam a outras mensagens menos luminosas que seu filho precisaria escutar. São mensagens sisudas de pouco apelo, enunciadas a seu filho num segundo plano, em tons mais baixos, quase protocolares:

  • É importante cumprir deveres, mesmo com sacrifício.
  • Você deve obedecer a regras e normas ainda que não as aprecie.
  • Você precisa ser modesto, você não é o centro do mundo dos outros.
  •  Aprenda lidar com a solidão, ela faz parte da condição humana.
  • Você tem que se automotivar não cabe aos outros fazê-lo.
  • Não fique na superficialidade, aprofunde-se nos temas.
  • Faça o que fizer com esmero, ainda que não seja percebido ou premiado.
  • Nem sempre uma vida que vale a pena, coincide com uma vida feliz.

Por razões óbvias, absorver esses valores tende a ser mais difícil do que aprender que a meta é ser feliz e se divertir. Ensiná-los é dos grandes desafios dos pais contemporâneos.

Prof. Dr. Luiz Alberto Hanns – Psicólogo clínico, graduado em psicologia pela USP, doutor e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP. Professor convidado da Sigmund Freud Universität de Viena. Consultor do Conselho Federal de Psicologia e Presidente da Associação Brasileira de Psicoterapia. Tradutor de Freud e autor de diversos livros sobre psicoterapia aplicada, incluindo “A Arte de dar limites: como mudar atitudes de crianças e adolescentes”.

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