
A transgeracionalidade pode ser entendida como um fenômeno que ocorre no meio familiar ao longo de gerações na forma de transmissão de valores, costumes e expectativas em relação aos seus membros, assim como padrões familiares que envolvem mitos, ritos e crenças que se tornam como referências para gerações futuras.
A forma e intensidade dessas referências definem o grau de interferência e seu potencial de moldarem a identidade das gerações futuras. Alguns autores afirmam que a herança dos antepassados pode explicar o modo como vivenciamos e enfrentamos situações ao longo da vida, ou seja, como a transgeracionalidade imprime a identidade familiar e como ela permite a compreensão do formato e da dinâmica familiar atual. Neste sentido, vale ressaltar que os elementos do passado por si só não determinarão o futuro ou a identidade dos membros na família.
A transgeracionalidade não significa apenas a transmissão de algo positivo, podendo ter aspectos negativos na interação familiar, com componentes disfuncionais e prejudiciais para a geração seguinte, mesmo tendo sido transmitidos por seus membros de forma imperceptível ou inconsciente. Assim como devemos considerar que em uma mesma família cada membro pode interpretar e assimilar de forma diferente os padrões familiares vividos, manifestando e definindo a manutenção ou desconstrução dessa herança familiar.
Alguns estudos apontam que a transgeracionalidade de uma dinâmica familiar que reproduz comportamentos, crenças ou valores sem conexão com a realidade vivida contribui para o aprisionamento ou dependência de seus membros dentro de um contexto familiar engessado nas gerações passadas, podendo gerar além de sofrimento, relações disfuncionais intra e extrafamiliares.
Podemos afirmar que, à medida que a sociedade gera novos significados às famílias, também são introduzidos novos conceitos no ciclo de vida familiar que se modificam através do tempo, tal como, a relação do termo “ninho vazio” mais predominante no passado com o “ninho cheio” atual.
As últimas décadas representaram bem essas mudanças que geraram reorganização das configurações familiares. Neste sentido, podemos citar a regulamentação do divórcio na década de 1970, fato que contribuiu na modificação do modelo nuclear (pai, mãe e filhos), passando a coexistir outras configurações, a partir dos novos relacionamentos, uniões e reorganizações conjugais, como a família extensa, família monoparental, família homoparental, família recasada, dentre outras. Contudo, independente do arranjo familiar, não podemos esquecer que esta é a instituição responsável pela transmissão de valores, cuidado, proteção e bem-estar aos seus membros.
Devido às grandes transformações sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais, podemos destacar que a mulher foi o ente social que teve maior impacto na forma de se relacionar com a transgeracionalidade, buscando a desconstrução dos referenciais advindos da herança familiar, tal como a constituição da conjugalidade, a qual foi sendo modificada em relação à decisão, desejo, ou não, da constituição de uma família ou postergando a maternidade. Outro aspecto na quebra da herança familiar para as mulheres de forma geral foi a busca pela formação educacional, profissional e independência econômica, assim como a reconstrução e o fortalecimento de seu papel na sociedade e na família.
Em relação aos aspectos negativos vividos no meio familiar, escolher e percorrer caminhos diferentes foi também uma forma de ajustar e redirecionar positivamente a herança familiar, quebrando barreiras, desigualdades e injustiças impostas pelas gerações passadas.
Por outro lado, quando compreendemos a influência positiva de gerações passadas sobre nossas vidas, nos apropriamos desses valores, comportamentos e ensinamentos e os adotamos como pessoas, pais e mães e os repassamos para as gerações futuras.
O tema transgeracionalidade nos provoca muitas reflexões e questionamentos tais como: quais valores, comportamentos e exemplos de nossas gerações passadas são ou foram nossas referências? Conseguimos nos readequar à herança familiar recebida? Ela foi mais positiva ou negativa para o que somos hoje? Teremos que ajustar nossos valores, vivências e padrões familiares ao repassá-los às futuras gerações?
Acredito que não tenhamos todas as respostas, mas podemos pensar que, cada vez mais, como pessoas, pais e mães, teremos que fortalecer nossa habilidade de adequação e ajustes da nossa herança familiar com a vida e realidade atual sem perder a essência dos nossos valores, convicções e do nosso papel e responsabilidade em transmiti-los aos nossos filhos.
Ilham El Maerraw – Psicóloga e membro do Conselho de Educadores da EPB.
Jean Khater Filho – Pediatra, membro e presidente do Conselho de Educadores da EPB.
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