Cuidado intergeracional: uma vi(d)a de mão dupla

Acompanhamos de perto a vida de duas pessoas que vivenciam o exercício do cuidado de modo muito especial há muitos anos. Certamente, são importantes exemplos positivos de amor e atenção. Uma mãe e uma filha nesta via de mão dupla que é a dos cuidados. Essa estrada está cheia de placas de sinalização: na partida, na ida e na chegada, indicando sempre o amor como o melhor combustível para seguir a viagem da vida – como é neste caso, em todas as placas: na de “parada obrigatória”, na de “atenção”, na de “siga”, na de “olhe”, na de “escute”, na de “proibido virar à esquerda ou à direita” nas lombadas, nos buracos, nos perigos, no aviso de “limite de velocidade”, no de “declive ou aclive acentuado”, no de “área de desmoronamento”, no de “curva acentuada”, no de “serviços auxiliares” e, até, no de “atrativos turísticos”.

Mãe cuidou da filha

A mãe, Arlinda Maria, cuidou da filha, Miriam, desde a gestação. Isso é comum e está de acordo com a ordem natural da vida. Mas o caso tornou-se especial na medida em que passou a cuidar de modo ainda mais intenso quando percebeu que a filha, por volta dos dois anos de idade, apresentava problemas de visão. Olhava o entorno com a cabecinha bem erguida. Levada ao oftalmologista, foi diagnosticada com Retinose Pigmentar, que não tem cura e cujo diagnóstico foi avassalador: Miriam perderia completamente a visão dentro de seis meses. Felizmente, a medicina errou. Em tempos em que os acessos à educação eram ainda mais desiguais e árduos às pessoas com deficiência, a visão da pequena Miriam teve alguns anos de atividade extra. Com os intensos cuidados da mãe, ela conseguiu enxergar até o final do primeiro ano do ensino médio.

A perda da visão, contudo, não foi o ponto final. Nem mesmo uma placa de “pare” para Miriam e sua resiliente mãe. No fim da década de 80, sem internet, sem audiobook ou aplicativos inteligentes que leem textos, a dupla cursou a graduação que deu à Miriam o título de fisioterapeuta. Como? A mãe, Maria, leu em voz alta todos os livros, artigos e materiais didáticos necessários à formação da filha. O conteúdo chegou à mente de Miriam passando pelo coração: era a voz da mãe que apresentava os conceitos de fisiologia e das demais disciplinas que ela precisaria aprender para se tornar uma profissional de saúde. E conseguiu.

A mãe cuidou da filha de modo inteligente e promoveu sua independência, tanto que a filha fez um curso de nível superior e chegou a trabalhar em banco por 14 anos, mesmo sem enxergar absolutamente nada.

Filha cuida da mãe

Agora a mãe está com 88 anos. Desde os 85, passou a depender integralmente dos cuidados da filha. Até então tinha artrose, mas se locomovia de bengala e até saía de casa quando precisava. Até que caiu dentro da residência e bateu a cabeça, sofrendo um traumatismo crânio encefálico. Ficou com sequelas neurológicas motoras. Desde então, é colocada na cadeira de rodas e retirada dela.

Este é um cenário comum para todos os pais que ficam dependentes de cuidados com doenças e a idade avançada. O que é especial, neste caso, é que esta filha, agora cuidadora, é cega. Mas esta limitação, na prática, é quase imperceptível, pois as atitudes não são só de cuidado, mas de muito carinho, afeto e atenção. Enquanto fala com a mãe, acaricia suas mãos e rosto o tempo todo. Zela pelo bem-estar da mãe em todos os aspectos, da higiene e alimentação à saúde (médico, remédios, tratamentos, exames…) e locomoção. Todas as “placas” da via possuem muito rigor e atenção, inclusive a de “serviços auxiliares”, ela se cerca de amigos e dos melhores parentes, sempre prontos a ajudar, mesmo que seja para uma visita carinhosa de vez em quando. Assim, as demais placas tornam-se melhores para serem atendidas, tais como, lombadas, buracos e demais perigos da pista.

Enfim, este fato pode até ser comum em muitos casos. Apenas destacamos as suas particularidades, que podem muito bem ser aplicadas em estudos acadêmicos das áreas afins e para uma pequena reflexão entre os voluntários da Escola de Pais do Brasil, bem como entre os leitores da revista anual da seccional de Curitiba. Nós, Ester e João, somos filha e pai, respectivamente. Nas atuais circunstâncias, cuidadores recíprocos, como milhões, bilhões de pais-filhas; pais-filhos. Todos, sem exceção, precisam ser cuidados. Em condições ideais, o cuidado se concentra no início e no fim da vida. No meio, vamos nos apoiando e fornecendo o combustível que é de graça: o amor.

Artigo 229 da Constituição Federal de 1988. ”Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

João Batista Athanásio – Advogado – E-mail: advathanasio@gmail.com

Ester Pepes Athanásio de Matos – Jornalista – E-mail: ester.athanasio1@gmail.com

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