
O fenômeno do suicídio transformou-se em um grave problema de saúde pública. Basta observar que, contemporaneamente, a maioria das pessoas tem um caso a relatar, por vezes testemunhando um suicídio, até mesmo, no próprio prédio em que reside, quando não em sua própria família. Os números são impactantes e, atualmente, crescem na faixa etária dos adolescentes. Se pensarmos que os jovens representam uma expressão de como está nossa sociedade, constataremos que algo está desajustado, violento, já que os jovens se rebelam, assumem posição crítica.
Muitas escolas têm se dedicado a identificar condutas de risco na adolescência, estando atentas também às pressões e estressores ambientais, a condutas impulsivas ou, ao contrário, estados de retraimento exagerado, por parte de seus alunos. No guia intersetorial de 2019, divulgado pelo estado do Rio Grande do Sul e intitulado “Prevenção do comportamento suicida em crianças e adolescentes”, encontram-se arrolados os seguintes fatores de risco, que podem aumentar o risco de autoagressão ou tentativa de suicídio em crianças e adolescentes: “História de tentativas de suicídio ou autoagressão (por exemplo automutilação); Histórico de transtorno mental; Bullying; Situação atual ou anterior de violência intra ou extrafamiliar; História de abuso sexual; Suicídio(s) na família; Baixa autoestima; Uso de álcool e outras drogas; Populações que estão mais vulneráveis a pressões sociais e discriminação, tais como: LGBTI+, indígenas, negros(as), situação de rua, etc”.
No ambiente escolar, escolas procuram implementar estratégias preventivas, como: difundir o autoconhecimento; identificar sentimentos conflituosos manifestos por seus alunos; trabalhar no intuito de melhorar a autoestima; treinar habilidades sociais com os alunos e a capacidade para enfrentar problemas; treinar estudantes para identificar colegas em risco; realizar a capacitação de professores e a orientação às famílias. É desejável que crianças e adolescentes desenvolvam novas aquisições e novo repertório para o enfrentamento da vida. Aprender sobre a interação social e como preservar relacionamentos é um processo contínuo, ao longo do ciclo vital.
É evidente que escola e famílias precisam trabalhar em parceria em prol do acompanhamento de uma criança ou adolescente. Observe-se apenas um exemplo: nos dias atuais, o bullying, que antes era restrito ao ambiente escolar — tão prejudicial à saúde mental coletiva — passou a ser continuado fora da escola, por meio dos aplicativos eletrônicos, o que expõe o adolescente, por exemplo, a uma tormenta contínua. Muito preocupa o cyberbullying e o tipo de uso de eletrônicos por crianças e adolescentes. Por meio de apenas um celular conectado à internet, abre-se o acesso de um(a) filho(a) a um mundo no qual dificilmente os responsáveis poderão exercer adequada supervisão. O melhor caminho é sempre manter a presença emocional. Mas como garantir isso em um mundo em que grande parte dos pais está imerso no trabalho, extremamente demandante? Tenho escutado de clientes mirins, em fase escolar, frases como: “Eu não gosto da escola”, “Eu aprendo no Google”, “Se precisar pesquiso”, “Eu pergunto à Inteligência Artificial e ela responde”. Mas se a máquina substitui a interação humana, já vemos consequências.
Nunca se temeu tanto que adolescentes saltem pelas janelas. Mas os pais de gerações anteriores levavam e buscavam em festas e, no mundo atual, concedem os traslados aos filhos, facilitados pelos aplicativos móveis. Chegar ou sair em um Uber, por exemplo, é sentido pelo jovem como possibilidade de exibir seu crescimento, sua precoce emancipação. É fato que crianças e adolescentes precisam de limites e de presença humana. Aliás, presença humana é necessária em todo o ciclo vital de um indivíduo. O isolamento, a solidão, a angústia, a dor, os sentimentos depressivos, entre outros — quando vividos de modo encapsulado — costumam ser disparadores de atos autodestrutivos. É preciso pensar no modo como temos vivido e nos relacionado (ou não) com nossas crianças e adolescentes.
Contemporaneamente, temos ouvido jovens falarem do desejo de provocar a própria morte como se estivessem em uma roleta russa. É tema corrente nas escolas entre alunos e, quando um suicídio ocorre em casa ou na rua, perplexidade e dor se espalham por toda a comunidade: familiares, professores, colegas e até pessoas mais distantes envolvem-se em largo sofrimento. Deixamos de ter contato somente com o suicídio do adulto.
Em pesquisa realizada em meu mestrado (DIAS, 1991; 1997; 2024), analisando mensagens de despedida deixadas por suicidas adultos, em forma de bilhetes, cartas e gravações em áudio, foi possível concluir que o suicídio é um ato de linguagem, em que se morre para poder falar. O que estaria acontecendo, então, que não teria sido possível a essas pessoas se comunicar em vida, precisando da morte para expressar sentimentos, revelar segredos ou simplesmente mostrar a sua recusa à convivência com outros? Haveria alguém disposto a ouvir tais pessoas em seu desejo pela morte, por um tipo de fim que aliviasse ou suprimisse o intenso sofrimento revelado ao morrer? Muitos são os aspectos que foram observados na vivência do suicida, à beira de seu ato autodestrutivo, quando se comunica por meio das mensagens de adeus deixadas. Sugiro ao leitor interessado que busque acesso aos resultados dessa pesquisa, que está publicada.
A desesperança também tem invadido o mundo de crianças e adolescentes e o suicídio é apresentado como solução. Encontrei na internet uma história em quadrinhos ensinando crianças a se enforcarem. Em que mundo estamos? Entramos dentro de um joguinho eletrônico onde todos morrem com facilidade? Mas o que pensar do suicídio de crianças e adolescentes ainda no começo de suas vidas? Muito se tem falado do imediatismo, da desesperança presente na vivência da geração atual, da influência do uso da internet sem supervisão adulta, da liquidez dos laços. Precisamos refletir sobre como são construídas personalidades/identidades contemporâneas em um mundo em que um delete de mensagem pode estancar qualquer vínculo, sem que se lide com as emoções e contingências envolvidas; em que se encontram inúmeros estímulos on-line apresentando a morte como um caminho de solução ao sofrimento.
Prevenir o suicídio é um trabalho que deve ser iniciado desde o início da vida, quando mantemos a presença humana diante de um recém-chegado, no lugar de nos deixarmos substituir por eletrônicos que virem babás ou nos coisificarmos sem termos que fazer o manejo das emoções. Essa realidade interfere na constituição do aparelho psíquico e prejudica o manejo das turbulências do desenvolvimento humano. Há muito o que se refletir sobre tais temas para que possamos gerar ações de promoção de saúde mental.
Maria Luiza Dias Garcia – Psicóloga com formação em Antropologia e Psicanálise. Mestre (PUC-SP), doutora e pós-doutora (USP). Especialista em Psicologia Clínica – CRP/SP. Psicoterapeuta: indivíduo, casal e família. Membro fundador da ABRATEF e da ABPCF. Membro do Conselho Administrativo da AIPCF. Coordenadora da Formação em Psicanálise de Casal e Família do Instituto LAÇOS.
Referências:
DIAS, M. L. Suicídio e os testemunhos de adeus. 2ª ed. São Paulo: Blucher, 2024. 1ª ed. pela Editora Brasiliense (SP), em 1991; 1ª reimpressão em 1997.
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Saúde. Guia Intersetorial de Prevenção do Comportamento Suicida. RS, 2019. Disponível em https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20190837/26173730-guia-intersetorial-de-prevencao-do-comportamento-suicida-em-criancas-e-adolescentes-2019.pdf. Acesso em 24 abril 2025.
Faça um comentário