RECONSTRUÇÃO: compromisso de ensinar às novas gerações o estranhamento deste mundo novo fragmentado

Olhando para o título do nosso artigo, vemos que começa com a palavra Reconstrução. Sempre que reconstruímos algo, é porque, por algum motivo, isto precisou ser ou foi destruído em parte ou totalmente, e queremos refazê-lo da mesma forma ou pelo menos parcialmente igual.

Juntando com o resto do título, logo concluímos: que o que estamos querendo reconstruir é a forma de transmitirmos às novas gerações ideias, valores, princípios ou atitudes que acreditamos serem válidos para a vida deles. O mundo que julgamos estar fragmentado, não vai fornecer-lhes diretrizes necessárias e seguras para se conduzirem pessoal e socialmente, de forma feliz e harmoniosa. Inicialmente, no mínimo, precisamos entender que mundo é este.

Em muitas comunidades humanas a grande maioria dos que nasceram até os meados do século passado, receberam uma educação em que valores e atitudes eram bem definidos e todos sabiam culturalmente o que era certo ou errado. Podiam muitas vezes não seguir, mas sabiam.

A partir de então, a evolução do pensamento humano, gerado pelo pensamento científico, filosófico e práticas econômico-financeiras da época, nos trouxe concepções diferentes do mundo, da vida e do ser humano.

Por meio de inúmeras experiências foi provado que cada ser humano, dependendo da sua educação e aparato biológico, tem uma visão própria das coisas, mais ou menos diferente da de todos os outros seres. Nasceu daí uma concepção subjetiva do mundo, dizendo que, uma vez que cada um vê o mundo de maneira própria e particular, a percepção ou verdade de cada um deve ser respeitada e consequentemente a Verdade única, o Bem Comum e demais valores universais não existem.

Esta concepção, traz vantagens e desvantagens para evolução da convivência humana.

A principal vantagem é a ideia de que todo ser humano deve ser respeitado Independente de credo, sexo, concepção política e religiosa. Atitude que traz implicitamente a defesa do valor universal de respeito a todo ser humano. Derrubando paradoxalmente, um dos pressupostos desta corrente filosófica, que é inexistência de valores universais.  A observância do principal valor universal, que é a preservação da vida, não fica contudo garantida.

Na mesma linha de raciocínio, para os homens viverem em sociedade precisam criar certas normas de convivência que proíbam cada um fazer o que quer.  “Se muitas pessoas começarem a trapacear, atacar, ou roubar umas às outras, a comunidade irá a colapso, acabará. É preciso prevenir isto – e boa parte de nossas leis incluindo as leis morais, é pensada para que tratemos as outras pessoas bem e com respeito”, diz Dunbar. R. (in veja 2017, p. 88).

A nossa atual realidade brasileira, sociopolítica e econômica, vem demonstrando isto.

Sabemos, por outro lado, que cada comunidade ou sociedade organiza a sua própria moral, apoiada nos seus valores e dentro dos princípios que pensa ser justo e necessário para a sua sobrevivência em conjunto, e que todas elas devem ser respeitadas, para ser possível a convivência Universal. Esta diversidade nos propõe várias morais, às vezes incompatíveis, com as quais temos que conviver e que a mídia atual traz para dentro de nossa casa, todas ao mesmo tempo, sem pedir licença. Daí a sensação de estranhamento e fragmentação que nos dá este mundo do séc. XXI. E que nos faz titubear ao cumprir, mais do que o compromisso, a função que cabe a toda família, de promover a socialização das novas gerações. Para tanto, penso que precisamos pensar quais os parâmetros que nos guiam neste mundo diversificado e que devem nortear esta formação.

Não sei se temos resposta para esta indagação, mas penso que um artigo que saiu na  Revista Veja (2017)  e que traz a opinião de vários autores ateus ou não, sobre a influência das religiões na formação das comunidades humanas, nos dará material para pensarmos a respeito.

Diz o artigo, que há muito tempo, a grande preocupação da ciência em relação à religião era fazê-la desaparecer, mas esta oposição vem mudando recentemente, graças ao pensamento de muitos neurocientista atuais, que afirmam que a religião (sentimentos e aspirações de vida sobrenatural e eterna) é totalmente natural e que tem exercido muitas funções importantes no desenvolvimento das sociedades. O parêntese é nosso.

O mais ambicioso estudo a este respeito vem se iniciando na Grã-Bretanha sob a direção de um psicólogo evolucionista em inglês Robin Dunbar, (in Veja 2017) professor da Universidade de Oxford, que garante não cultivar nenhum traço de religiosidade e que pretende testar a hipótese de que a religião teve influência decisiva na formação das comunidades humanas. Esta suposição levanta importante indagação: a moralidade pode prescindir da existência de Deus? Pois ninguém duvida de que os valores e deveres constituintes da moral, só se mostraram indispensáveis a partir da existência das comunidades.  Diz Dunbar nesta entrevista. “Não sou religioso, mas impressiona a capacidade muito bem-sucedida das religiões de criar comunidades.” (in Veja 2017, p.90).

Como já dissemos, as diferentes morais que pretendem amparar as comunidades, se apoiam em valores religiosos, políticos e sociais, que procuram beneficiar as maiorias daquelas comunidades. São os valores culturais que variam de uma cultura para a outra.

Sam Harris diz: “como crítico da religião, posso atestar que o argumento que mais se ouve em favor da fé em Deus, não é que haja evidências convincentes da sua existência, mas que a fé Nele é a única fonte confiável de significado na vida e de orientação moral”.  Resumindo, só a fé em Deus organiza as civilizações (in Veja p.91).

Assim, se quisermos formar nossos filhos, como cidadãos para organizar comunidades, temos que explicar-lhes que devemos respeitar as diferenças das pessoas e as diversas morais sociais, até o ponto em que elas nos permitam observar os valores universais.  Valores Universais são aqueles que variam muito lentamente, a partir da evolução do espírito humano, da ciência e da técnica. Valem para toda a humanidade. Destes derivam as aspirações e Amor ao próximo, de Bem-Estar, de Justiça, Respeito e Paz da humanidade. Os valores culturais são submissos aos universais, comuns a todos os homens.

Por meio das vivências de relacionamento (da convivência), da educação que recebemos, formamos crenças, valores e modelos, através dos quais se constitui a nossa forma de ver o mundo. É a nossa visão Ética, que embasará a nossa moral.

Caso nossa família ou matriz de identidade nos transmita vivências afetivas, positivas, estas crenças valores e modelos serão voltados para a compreensão e cuidado de si e do outro.

Quando as famílias proporcionam relações de vivências negativas, estas, em geral, levam a atitudes de agressividade, violência e desamor.

Para sanar mudanças de atitudes que os filhos venham apresentar de desrespeito aos valores universais, os pais podem recorrer a dois meios:

– Procurar ressignificar e valorizar a maior capacidade de doação de cada um, fazendo com que percebam que quem dá mais é porque tem mais, e pode dar mais, em lugar de cobrar do outro que se doe mais. (Naggy, 1983). Ex.: pedindo que reflitam sobre a atitude que os amigos estão adotando em relação a um colega mas recluso o que apresenta dificuldades, pode-se discutir outra forma de agir para ajudar o colega.

– Outro ponto importante é que sempre devemos pensar, antes de sugerir alguma coisa a alguém, se realmente aquilo vai lhe fazer bem. Estas duas atitudes restabelecem a estrutura ética familiar, pois, se todos começarem a agir desta forma se desenvolve a crença e a confiança mútua.

Sempre podemos, por meio de reflexões e diálogos, repensar os comportamentos e seus significados, reconstruindo continuamente a estrutura relacional nas famílias, de forma que permita a todos os seus membros recuperarem a capacidade de se autogerir e de confiança mútua. Isto significa, propiciar uma mudança nos valores familiares.

Para conseguir este processo, os pais devem ser cuidadores. Ser cuidador, para Boff (2003), é estar presente, disponível com ternura e firmeza. Os pais se tornarem cuidadores é uma das poucas coisas que pode compensar os filhos da perda de alguns companheiros pouco desejáveis, porque o cuidado completa o amor, pode regenerar anos passados e prevenir os futuros.

Na adolescência, quando começa a aparecer a preocupação e a necessidade de entender o mundo, o Ágape, é hora de se ativar o cuidado e a compaixão pelo outro, mas isto só acontece pelo exemplo.

A família deve se reger pelo amor gratuito que impregna as relações de seus membros, com espaços de liberdade para opções com valor moral. Significa substituir a estrutura contratual por uma estrutura de tipo personalizada, assentada na dignidade de pessoas, na participação consciente, no respeito ao outro, na autonomia moral de seus membros, ligados afetivamente entre si e pelo princípio da participação de todos, em tudo que afeta o convívio.

A flexibilidade relacional entre seus membros, está intimamente relacionada à autonomia. Quando a flexibilidade está presente, garante a liberdade, gera diálogos, proposições abertas, a conversa caminha, ao contrário das verdades incontestáveis da modernidade, que nos colocavam sob molduras rígidas de pensamento e de ação. Todos têm liberdade para expressar o que pensam e até assumir algumas posições diferentes dos pais, desde que sejam discutidas e conversadas à luz de valores.

Quando as famílias não conseguem viver dentro de casa diálogo, cuidado, compaixão, fazem mal uns aos outros.

Quando as famílias em suas relações adotam comportamentos agressivos, desqualificadores excludentes, de respeito às diferenças, não conferem comportamentos morais, nem princípios éticos, nem modelos humanizadores.

Quando pais não transmitem aos filhos e entre si, a ternura que confere a paz e a direção sem intolerância, a família desorganiza-se, perde-se a confiança, porque não existe responsabilidade, cuidado, mas dominações e injustiças.

Conclusão

           Os pais que querem ser cuidadores, e pretendem criar cidadãos livres e críticos, precisam:

Valorizar as qualidades de cada um e deixar que cada um fale por si.

Abrir mão do pensamento julgador e procurar compreender o que acontece com cada um, desenvolvendo a capacidade de cuidar.

Rever os problemas procurando sempre novas soluções concretas para os velhos problemas.

Suportar as diferenças para garantir as individualidades.

Usar o humor que aproxima e dá leveza.

Com esta atitude, acreditamos que não só estarão passando aos filhos valores, da única forma que é possível, por meio do exemplo e da vivência, mas também cumprindo o seu compromisso de educar as novas gerações em um mundo fragmentado.

Fazendo isto automaticamente, passarão a seus filhos um sentido de vida que pode vir diretamente de uma crença religiosa, ou uma concepção de respeito ao outro como ser humano, decorrente de uma conduta social aprendida, que como diz Dumbar(inVeja,2017) também vem indiretamente da crença em Deus, porque a pergunta “Existe Moral sem Deus?”, feita pelas indagações científicas, ainda não foi respondida, guardando muitas probabilidades de ter uma resposta negativa.

REFERÊNCIAS

BOFF, L. Ética e Moral a busca dos fundamentos. Petrópolis, RJ.: Vozes, 2003.

GAMA, R. Existe Moral Sem Deus? A relação entre os valores humanos e a fé ganha um novo valor científico. Revista Veja. Editora Abril ed. 2526 – ano 50 – n 16, 19/04/2017.

MARCOS, L. R. Las semillas de la violencia. Madrid, Editorial Espasa Calpe S.A., 2004.

MONTAGU, A. Naturaleza de la agresividad humana. Madrid, Alianza, 1990.

MOTTA, E. e CAVOUR, R. A violência oculta no cotidiano da família de A a Z. Rio de Janeiro, iQi, 2005.

NAGY, I. e SPARK, G. M. Lealdades invisíveis. Buenos Aires: Amorrortu, EBA, 1983.

Maria Rita D’Angelo Seixas é Pedagoga; Psicóloga; Psicodramatista; Psicoterapeuta clínica: individual, de grupo, casal e família. Especialista em Orientação Educativa; Docente de Psicodrama reconhecida pela FEBRAP; Terapeuta e Supervisora de Terapia Comunitária pela ABRATECOM; Conselheira da Escola de Pais do Brasil, desde 2004; Agente da Paz pela Unipaz/ Palas Atena, a partir de 2006. Exerceu vários cargos de Coordenação nestas entidades e é autora de vários livros e capítulos de livros e artigos publicados, sobre Psicodrama e Terapia Familiar ética e Cultural da Paz.

Artigo publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – SEccional de Chapecó nº24/2018, p. 6 a 10.

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