O que compartilho neste texto é o que tenho aprendido como mãe, educadora, diretora de escola, alguém que tem buscado, no estudo, nas experiências cotidianas, no contato com especialistas, pais, educadores e alunos, alguns caminhos. Caminhos que não são únicos e não representam verdades absolutas. São escolhas que fazemos diariamente.
Tratarei da relação entre família e escola na formação de crianças e jovens, trazendo experiências cotidianas que iluminem quatro aspectos dessa relação: o conceito de formação compartilhada; a socialização primária e secundária; os contextos que são vividos hoje e as esferas de atuação da família e da escola; o desenvolvimento da autonomia para a solução de conflitos.
Iniciemos nossa reflexão. A formação de crianças e jovens é uma ação compartilhada, fundamentada numa escolha dos pais. Essa escolha traz expectativas e valores da família e desenha um perfil da criança ou do jovem com sua personalidade. Traz, também,valores da escola e sua proposta de formação.
A escolha dos pais por uma escola é uma entrega em que reconhecem que a instituição é merecedora de compartilhar a formação de seu filho. É um ato de confiança, e a escola deve sentir-se honrada por ter recebido essa missão. Portanto, é importante ressaltarmos que, a partir do momento da escolha, estamos do mesmo lado e faremos o melhor. Não será simples, teremos divergências, mas crescemos juntas, escola e família, e pretendemos ser bem-sucedidos.
Quanto à socialização de crianças e jovens, segundo aspecto sobre o qual queremos refletir, lembramos que é o processo pelo qual todos passamos para sermos pessoas. A família é responsável pelo que chamamos socialização primária. É no seio dessa relação que a criança, desde muito pequena, diferencia-se como indivíduo, percebendo a existência de outras pessoas com quem convive, construindo regras de convivência, iniciando a vivência de conflitos entre “o que quero, o que devo e o que posso fazer”. A construção das experiências da família, com suas diferentes configurações, está centrada em relações que constroem o indivíduo, em papéis como filho, irmão, etc.
A escola é o primeiro espaço social em que a criança passa a conviver cotidianamente e interagir com um universo mais amplo de relações, assumindo, portanto, novos papéis sociais. A escola é responsável pela socialização secundária, pois tem, em sua razão de ser, o objetivo não só da formação de indivíduos, mas, essencialmente, da formação de cidadãos. Sua organização e proposta visam ao crescimento e florescimento pessoa dentro de um ambiente coletivo. Temos, então, outros papéis a viver, entre eles, o de aluno.
A família não pode abrir mão da socialização primária, construindo, no seu cotidiano, valores, regras de convivência, limites e referências que estruturam seu filho como indivíduo. A escola, por sua vez, não pode abrir mão da socialização secundária que lhe cabe, construindo, no seu cotidiano, experiências que contemplem a formação do aluno como cidadão. Uma instituição não tem possibilidade de desempenhar, com competência, o papel da outra.
Partindo dessa reflexão, em nosso objetivo de formação compartilhada, não podemos esquecer que o filho não é o aluno e o aluno não é o filho. São papéis diferentes que a mesma pessoa exercita em sua experiência devida, assim como nós, os adultos, vivemos vários papéis (pai-mãe/filho-filha/profissional, entre muitos outros). Ao mesmo tempo em que somos mais do que a soma desses papéis, somos diferentes nas experiências com cada um deles.
Um bom começo para escola e família compartilharem a formação de crianças e jovens, é entender que o filho pode ter determinados comportamentos no seu dia a dia com a família e exercitar novos comportamentos no seu dia a dia como aluno. Exercitar novos papéis e, em alguns momentos, transgredir normas, faz parte da formação de cada indivíduo.
O terceiro ponto de reflexão recai sobre a identificação do contexto em que vivemos para a realização de nossa tarefa compartilhada. Quando nos remetemos, com saudosismo, a frases como “no meu tempo…”, deixamos de considerar que os tempos em que nossos filhos vivem são nossos também. Tentar viver desafios desses tempos não é se deixar levar por tendências ou modismos. É tentar diferenciar entre o novo e a novidade, mantendo e compartilhando referências construídas e ligando-as aos referenciais escolares que com elas dialogam.
Novos desafios surgiram com tecnologias que quebraram as pareces de nosso ambientes e romperam a relação espaço e tempo para comunicar-se, interagir, conhecer e produzir conhecimento em diferentes linguagens. Redes sociais trazem novas oportunidades e novos desafios que precisam ser enfrentados. Nós, adultos, temos que buscar respostas para lidarmos com nossos filhos-alunos nesses novos contextos, decidindo sobre aquilo de que não abriremos mão no conjunto de valores em que acreditamos.
Mas, como atuarmos juntos e, ao mesmo tempo, termos claras as esferas de atuação de cada um? Não é fácil. Pensemos em como recebermos, em casa, a percepção dos filhos sobre problemas, dificuldades ou ocorrências no dia a dia da escola. Quando chega até a casa qualquer situação desafiadora, por meio do relato dos filhos e até de amigos deles, é importante que, antes de assumir qualquer posição a respeito, como pais, procuremos ampliar nossa visão sobre o assunto. Isso porque a visão do filho/aluno e de seus amigos são visões parciais. Não quer dizer que não possam ser verdadeiras, mas,certamente, não são as únicas. Quando os pais assumem a defesa incondicional do filho, baseado apenas em seu olhar, talvez estejam perdendo uma grande oportunidade de educá-los. Algumas armadilhas como “meu filho não mente”, “meu filho não fez”, “eu conheço meu filho”, “é a fala dele contra…”, “eu pago, eu quero…”, podem impedir uma ação mais assertiva no trabalho compartilhado de pais e escola na formação de seus filhos/alunos.
O que sugerimos é, nas situações em que ocorram problemas, que os pais venham à escola, compartilhem preocupações e descontentamentos e, principalmente, dêem o crédito à dúvida – busquem cenário mais amplo e escuta recíproca, para que, a partir disso, família e escola possam atuar da melhor forma possível. Crédito – algo que foi acordado quando foi feita a escolha por esta e não por outra escola para a jornada conjunta de formação de seus filhos, não é mesmo?
Pensando sobre posturas de pais no acompanhamento de movimentos da escola, sugerimos algumas perguntas para orientar suas ações: Como eu espero que meu filho seja educado? Qual o valor da escola e dos estudos para nossa família? Como construir, no cotidiano, condições para que o meu filho seja um bom aluno e tenha compromisso com sua própria aprendizagem?
Temos percebido, em nosso cotidiano, certa dificuldade de pais em lidar com frustrações e desafios de seus filhos. Usamos uma metáfora para ajudá-los a refletir sobre o assunto. Fazemos uma comparação entre diamante e cristal. São duas pedras de beleza ímpar, únicas, que precisam ser lapidadas. A diferença essencial está na dureza das pedras. O cristal quebra-se com mais facilidade e o diamante, pedra de dureza diferenciada na natureza, precisa ser lapidado para exibir toda a sua beleza.
Como pais, temos tendência a enxergar nossos filhos como cristais. Entretanto, eles são muito mais fortes do que acreditamos. São diamantes que necessitam ser lapidados pelas experiências vividas entre seus pares e com adultos, em diferentes ambientes, entre eles, os escolares. Isso implica viver consequências de seus próprios atos, experimentar novos relacionamentos em diferentes distribuições de alunos em sala de aula, procurar gerenciar seus conflitos e superar desafios – elementos essenciais para formar-se pessoas fortalecidas, que possam lidar com o mundo adulto de forma assertiva. Certamente, essas experiências devem ser acompanhadas tanto pela família quanto pela escola sob a perspectiva filho/aluno e aluno/cidadão.
É também no cotidiano, que a família faz algumas escolhas que impactam no bom aproveitamento do filho na escola. Vamos citar quatro dentre os contextos mais significativos para essas escolhas: rotina e organização familiar, lição de casa, uso do celular, conflitos e ações entre adultos.
Quanto à rotina e organização familiar, cabem muitas escolhas: Como garantir, dentro da dinâmica familiar, condições para que a criança e o jovem tenham como cumprir suas responsabilidades escolares? Como organizar a agenda da criança com atividades extracurriculares em equilíbrio com o cumprimento das atividades escolares? Como manter a rotina de horários de sono, tempo destinado ao uso de computadores e jogos, e também favorecer compromissos ou atividades sociais, sem prejudicar o bom rendimento escolar? Como valorizar os estudos, fazer o acompanhamento e a cobrança do cumprimento das obrigações escolares? Como mostrar as consequências caso não sejam cumpridas? Todas essas escolhas fazem diferença no processo e resultado dos filhos na escola.
A lição de casa, por sua vez, deve ser realizada pelo filho/aluno com o apoio do adulto, investindo na construção da autonomia da criança e do jovem. Alguns filhos necessitam de cobrança mais intensa e freqüente, mesmo quando mais velhos. O importante é que não se abra mão dessa atitude. Pode-se fazer a lição com o filho, se necessário, mas não por ele. O importante é valorizar sua produção, incentivando-o a dar o melhor de si na execução de suas tarefas. É interessante o contato dos pais com a escola para obter recomendações para o auxílio às lições.
O uso do celular pelos alunos é outro aspecto que alterou sensivelmente a relação da família com o filho no ambiente escolar. O celular tem sido mencionado, entre especialistas, como o prolongamento do “cordão umbilical dos filhos”, não favorecendo a construção de sua autonomia. Vejamos como isso ocorre.
Crianças e jovens acabam, pelo rápido acesso aos seus pais por telefone, sendo privados de crescer em autonomia pela superação de seus conflitos e desafios. Situações que seriam tratadas no ambiente coletivo e provavelmente, se encerrado na dinâmica escolar, acabam tendo sua dimensão ampliada pela abordagem preocupada de pais, mesmo antes que o aluno e/ou escola pudesse atuar sobre elas. Citemos um exemplo freqüente em nosso cotidiano: durante o recreio, algumas alunas se desentendem, e uma delas sente-se rejeitada. Imediatamente, ela liga para sua mãe ou pai, chorando, trazendo-lhe o problema, antes até de solicitar apoio junto a um adulto da escola. Ao receber a ligação, o familiar entra em desespero, pois toma contato com a filha que está sofrendo em função de um conflito e, de longe, não percebe que tem condições limitadas de avaliar e atuar.
Muitas vezes, antes até de a escola tomar conhecimento do fato, a família entra em contato, de uma forma não assertiva, como se o filho estivesse sendo massacrado, e ninguém estivesse cuidando dele. Deixando de lado aspectos que podem parecer caricaturados, conflitos precisam ser superados, em primeiro lugar, pela criança que tem que se fortalecer ao longo de suas experiências. Não o conseguindo sozinha, os adultos que devem dar apoio necessário são aqueles que estão acompanhando no ambiente escolar, pois afinal o aluno está vivendo conflitos da vida coletiva. Caso, ainda assim, os dilemas não sejam superados, entra em cena a parceria família e escola, no compartilhamento de diferentes percepções sobre os fatos e no encaminhamento de ações possíveis para o aluno superar o desafio.
Por fim, o aspecto que gostaríamos de tratar é a questão de como lidar com os conflitos e divergências que surgem entre família e escola. Partindo-se da natureza da escola e sua missão, podemos começar nossa reflexão pelo fato de a mesma ser uma instituição em que há gente formando gente. Portanto, essencialmente, é espaço de complexidade e conflitos.
Quando há conflitos entre pares, ou seja, entre alunos da mesma faixa etária ou de idades próximas, o mais natural é que sejam tratados, em primeiro lugar, entre os próprios envolvidos. Por exemplo, no exercício da convivência coletiva, não é incomum grandes amigos terem conflitos, afastarem-se e, depois, retomarem seus laços. Viver e superar tais conflitos faz parte do crescimento e da formação de cada um deles. Portanto, cabe aqui um alerta quanto à intervenção de adultos, sejam eles da escola ou da família. Muitos conflitos tomam dimensão bem maior do que a necessária quando pais ou educadores tomam a frente. Crianças e jovens superam mais facilmente seus problemas quando são tratados por eles. Devemos, como adultos, estar atentos e monitorar as situações de forma a apoiá-los e intervir, se necessário. Como já comentamos, é importante relembrar que “o filho não é o aluno” e vice-versa. Por isso é preciso ter claro em que papel a criança ou o jovem vive o conflito com seu par (irmão, colega etc.), para decidir que adulto será o mediador: pais, educadores ou ambos.
Divergências, dúvidas, sugestões e descontentamentos dos pais com a escola devem ser tratados entre adultos. Partindo do princípio de que o filho estuda na escola por escolha dos pais, comentários denegrindo a instituição ou trazendo descontentamentos do adulto para o filho, podem enfraquecer a relação de confiança e respeito deste com a escola. Portanto, é fundamental que a família traga para a escola as questões para serem trabalhadas em parceria, com respeito e assertividade, de modo a se poder fazer o melhor pelos filhos/alunos. A transparência, o diálogo e a confiança são caminhos para enfrentarmos as dificuldades.
Ainda tratando de conflitos e ações entre adultos, há um aspecto que gostaríamos de ressaltar: a esfera decisória da família e da escola na formação do filho/aluno. Existem situações que envolvem não somente o próprio filho, mas também os demais alunos ou profissionais da instituição, como professores, por exemplo. Em alguns momentos, pais cobram da escola posições e atitudes que não estão na sua esfera de decisão. Cabe aos gestores da escola contemplar um número maior de variáveis, além da percepção do filho/aluno e seus pais; também precisam atuar sobre elas com o sigilo necessário à preservação de todos. Quando tudo corre bem, no trato dado aos problemas com familiares, alunos e profissionais, as pessoas que devem e tomam conhecimento das consequências e medidas do conflito são apenas as envolvidas no mesmo, juntamente com o seu responsável. Não é incomum os pais trazerem a cobrança do que acham que deveria ser feito pela escola, juntamente com a afirmativa de que nada foi feito. Essa afirmativa, em geral, está alinhada a expectativas pessoais de como tratar o assunto, na perspectiva de pai do respectivo filho/aluno. Cabe às pessoas à frente da escola tomar decisões e responsabilizar-se por elas, considerando que a instituição é uma casa de educação em que todos, sem exceção, podem e devem se aprimorar.
Levantados alguns desafios e variáveis ligados ao relacionamento e posturas dos pais no acompanhamento da escola, sugerimos passos a serem dados para o bem do filho/aluno:
– valorizar o esforço e a superação dos desafios por parte dos filhos mais do que o produto do resultado, buscando que os mesmos não se contentem em realizar tarefas pelo mínimo esforço, sem dedicação e comprometimento, e que lidem com frustrações como parte do crescimento. Privar os filhos dos desafios e das consequências de seus atos nem sempre é protegê-los;
– a partir da dinâmica e rotina familiares, definir quais são os aspectos essenciais que serão acompanhados diretamente pelos pais e aqueles que serão acompanhados por outros adultos da convivência dos filhos;
– utilizar as instâncias corretas de comunicação e relacionamento com escola para tratar os assuntos pertinentes à formação de seu filho, lembrando-se de que a escola é um espaço coletivo e que está a serviço da formação de cidadãos.
A missão de educar nossas crianças e nossos jovens é complexa e, por muitas vezes, podemos nos deparar com sentimentos de despreparo, de cansaço e até de incompetência. Entretanto, esses momentos não devem nos imobilizar. Devemos exercitar nossa resiliência e buscarmos caminhos que lapidem nossos “diamantes” para brilharem como pessoas, seres éticos, íntegros e competentes como cidadãos, que possam contribuir para a construção de um mundo melhor. Nesse processo, certamente, nos tornamos pessoas melhores também.
Este artigo foi publicado nos Anais do 47º Congresso Nacional da Escola de Pais do Brasil, realizado em São Pulo nos dias 03 a 05/06/2010, p. 103 a 110.
Esther de A. P. M. Carvalho – É professora, Diretora-Geral do Colégio Rio Branco, São Paulo.
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