“O vínculo – a relação íntima, afetiva e carinhosa do bebê com sua mãe – é fundamental para a continuidade da amamentação e, principalmente, para não romper essa troca de afeto entre mãe e filho, que muitos trabalhos internacionais e nacionais estão demonstrando ser danosas para o desenvolvimento biopsicossocial da criança.”
Durante anos da minha vida, lutei intensamente pelo aleitamento materno com trabalhos publicados já no ano de 1972, num momento em que no Brasil pouco se falava de aleitamento, de vínculo mãe/filho, de afeto e de cuidados, tão importantes nos primeiros anos de vida de uma criança.
Aqueles foram anos pioneiros em que andamos por todo o Brasil falando sobre a importância da amamentação, da proteção que o leite humano dá à criança, principalmente na área imunológico e alérgica, bem como, claro, no desenvolvimento psicoemocional e neurológico. Eram tempos de uma guerra intensa em que era preciso desbravar e provar para as pessoas que amamentar era fundamental para ajudar no desenvolvimento emocional e imunológico de nossas crianças. Felizmente, hoje constatamos que muitos outros profissionais, que não só os pediatras e professores de pediatria se preocupam com o assunto e que amamentar hoje é, indiscutivelmente, fundamental para o desenvolvimento de nossas crianças. Ninguém mais discute isso, apesar de, infelizmente, ainda estarmos com taxas de aleitamento exclusivo em muitas partes de nosso País, bem abaixo do que desejamos.
Estou convencido de que o principal problema que impede o aumento claro e progressivo das taxas de aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses, e complementado com outros alimentos até os dois anos, se deve a dois fatores fundamentais: o despreparo que vemos as mães a amamentarem, que desconhecem muito dos procedimentos e técnicas necessárias para vencer os eventuais empecilhos e que, sem pestanejarem, diante das dificuldades um pouco mais sérias, acabam indicando a suplementação e, ao lado disso, os problemas obstétricos e da falta, em muitas maternidades, de bancos de leite humano e de preparo, para participar ativamente do incentivo à lactação.
Outro fator, sem dúvida alguma, fundamental, é a problemática do trabalho da mulher, que se vê obrigada (com raras exceções), a deixar seus filhos em creches aos quatro meses de idade, creches essas que, em contradição ao que diz a CLT, não estão nos locais de trabalho dessas mães. Esses dois fatores, o despreparo e a falta de conhecimento e mesmo a falta de disposição para ajudar as mães a vencerem os obstáculos (ajudar uma mulher a amamentar e apoiá-la exige tempo, boa vontade, conhecimento e principalmente atitude, que nem sempre existem), e claro, a nossa legislação trabalhista que raramente consegue dar, pelo menos, os seis meses que preconizamos de aleitamento materno exclusivo, tornam a amamentação um desafio ainda maior.
Ora, é um contrassenso e até um abuso, diria, ficarmos fazendo discurso de que amamentar exclusivamente ao seio é fundamental, se não podemos garantir à mulher trabalhadora esse tempo fundamental para poder ficar junto de seu filho e conseguir amamentar. E o pior, às vezes vemos que as próprias mães acabam aceitando passivamente as migalhas, os pequenos acréscimos salariais, para que “paguem” uma creche para seus filhos. Geralmente esses recursos são ínfimos e não conseguem, de forma alguma, cobrir as reais necessidades pecuniárias para pagar uma creche. E é preciso também deixar claro a fundamental ideia de que a creche não é um estacionamento de crianças, onde a mãe coloca seu filho pela manhã e volta à noite para buscá-lo, o que impede a amamentação. A luta pelas creches nos locais de trabalho é, principalmente, para que a mãe possa estar junto ao seu filho e ir vê-lo todas as vezes que necessitar e que fará o que for preciso para manter a lactação e o vínculo afetivo, tão necessários ao desenvolvimento e à proteção imunológica.
Desnecessário dizermos que aos quatro meses os bebês estão numa fase, como atestam veementemente os imunologistas, de grande vulnerabilidade imunológica e toda a proteção que receberam da mãe durante a gravidez está sendo garantida principalmente pelo aleitamento e pela permanência em casa, longe das populações bacterianas e virais que encontramos em grande quantidade nos locais em que muitas pessoas e crianças são reunidas. A creche é por si só um local especial para esse tipo de contato infeccioso no momento dessa grande vulnerabilidade imunológica de nossas crianças. É justamente nesse momento que a nossa legislação manda que as crianças sejam retiradas de suas mães e entregues às creches onde, infelizmente, na maioria das vezes são desmamadas, até porque, como a maioria dessas creches é longe do local de trabalho, não há como continuar e pelo menos se fazer um esforço para levar a amamentação exclusiva até o sexto mês de vida. Claro que a introdução precoce da mamadeira, com a famosa confusão dos bicos que tanto falamos, é fundamental para aumentar ainda mais o desmame, mas o problema não é que a mamadeira desmame, ela só pode fazer isso porque as mães não podem ficar com seus filhos para poderem amamentá-los. O problema fundamental é a falta de uma licença maternidade adequada, como muitos países desenvolvidos já têm e que chegam a oferecer até dois anos dessa licença, muitas vezes permitindo ao pai, que ele fique com a criança em casa, se assim o casal desejar. Se a mãe já desmamou o bebê ela pode voltar ao trabalho e se o marido desejar, ele pode assumir a guarda da criança, por exemplo, durante todo o segundo ano de vida. Isso é muito importante, pois permite ao casal dividir os cuidados, principalmente no segundo ano, repito, se a amamentação já se encerrou.
O vínculo – a relação íntima, afetiva e carinhosa do bebê com sua mãe – é fundamental para a continuidade da amamentação e, principalmente, para não romper essa troca de afeto entre mãe e filho, que muitos trabalhos internacionais e nacionais estão demonstrando ser danosas para o desenvolvimento biopsicossocial da criança.
Muitos trabalhos internacionais, e eu defendo e discuto isso em alguns de meus livros, principalmente no criança terceirizada. Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo”, demonstram as dificuldades futuras de crianças privadas de afeto e terceirizadas precocemente.
O que tenho sentido e percebido com certa apreensão e tristeza é que muitas vezes há uma grande confusão que tento desfazer com pessoas, principalmente quando questões de gênero vêm à tona, pensando que estamos tentando subjugar novamente a mulher, limitando-a a uma condição puramente domiciliar e negando-lhe o maravilhoso e importantíssimo direito conquistado pelo mundo feminino nas últimas décadas. Não se trata dizer às mães: não trabalhem fora de casa! Sejam apenas amas de leite e cuidadoras de crianças! Não é isso. O que dizemos é que uma sociedade consciente e conhecedora dessa fase importantíssima que chamamos dos “Primeiros 1000 dias”, sabe do fator preponderante para o desenvolvimento físico e psíquico que acontece nesse período, constituído principalmente pela gestação com suas 40 semanas, quando o útero é fundamental para o bem estar do feto e claro, da amamentação, que vem completar o que chamamos de “extero gestação”, ou seja, esse período fora do útero em que a criança continua um desenvolvimento intenso neurológico, quando aprende a sentar, engatinhar, andar, falar as primeiras palavras, se locomover, ir aos poucos se DESenvolvendo. O prefixo “des” que deixei separado é negativo e o significado é que des envolver, significa exatamente ir aos poucos saindo do envolvimento, indo adquirindo independência, aprendendo a se defender, a comer com suas mãos, a se comunicar, a poder aguentar a distância da mãe e da família e é esse período, naturalmente, que constitui a época em que pode ir para as creches e ficar longe da mãe e da família e assim ir se DESENVOLVENDO, saindo do peito, vagarosamente, sendo desmamada sem pressa (algumas pessoas prolongam ainda mais esse período e não vejo problemas nisso). Não é o momento para se dar mamadeira. Não! Esse desmame é maravilhoso, porque a criança já está tomando líquidos no copo já no final do primeiro ano e depois durante todo o segundo ano e se livrando da necessidade de participar dessa sociedade tão preocupada com a alimentação láctea bovina que, como sabemos, muitas vezes traz muitos problemas alérgicos, metabólicos e etc.
“Os pediatras hoje sabem muito bem que são os últimos dos clínicos gerais em ação e que por isso, consequentemente repousa sobre eles toda a parte de prevenção, nutrição, aconselhamento e ainda a prerrogativa de evitar as doenças graves que acometem ou acometerão os adultos, tais como: obesidade, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, diabetes, hiperinsulismo, síndrome metabólica, infartos do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais etc.”
Por esse motivo, ao aceitar este maravilhoso convite de escrever sobre aleitamento materno, não resisti e falei um pouco dos meus trabalhos mais recentes sobre as relações familiares e as consequências funestas do abandono precoce de nossas crianças, de todas as classes sociais. É como se nossa sociedade estivesse perdendo o hábito de cuidar das crianças, como se imaginassem que basta gestar e após o parto que, infelizmente tem sido frequentemente operatório, também conta dessa correria inacreditável, colocar a criança aos cuidados de outras pessoas, quer sejam babás, vizinhos, familiares, avós etc., ou seja, terceirizá-las, seja suficiente. Num dos meus livros eu falo, em um dos capítulos, de um tema que prezo muito, que é o da gênese da violência urbana no mundo contemporâneo. Muitos trabalhos, e abordo também isso no meu livro “Quem cuidará das crianças? A difícil arte de educar os filhos hoje”, e num outro “Cuidado, afeto e limites: uma combinação possível” (este último escrito em parceria com o Psicólogo Ivan Capelatto), demonstram que crianças terceirizadas e precocemente colocadas aos cuidados de pessoas que não seus próprios pais, têm muito mais probabilidade de apresentar problemas existenciais, psíquicos e biológicos e isso na juventude e na idade adulta, além de violência, dificuldades escolares, alterações de humor e problemas de relacionamento. Algumas dessas publicações falam até de alterações graves, como a hipertensão, arteriosclerose e taquicardia em jovens que viveram em lares desfeitos ou violentos ou mesmo sem afeto. A nossa sociedade precisa acreditar nisso. Costumo ser criticado quando digo em algumas palestras que é preciso prestar atenção e decidir bem o que queremos. Se quisermos um filho, precisamos saber que teremos que cuidar dele por muitos anos, às vezes, até a idade adulta. É melhor postergar uma gravidez, deixar para ter um filho mais tarde ou mesmo não tê-lo, do que o tendo para satisfazer uma vaidade pessoal ou o desejo de um dos cônjuge ou alguém da família, não consigamos tempo ou disposição para cuidar e amar essa criança.
E o que tem o aleitamento materno, a amamentação, com tudo isso?
Amamentar adequadamente, pelo menos até dois anos de vida e, principalmente, exclusivamente durante os seis primeiros meses de vida, é a melhor maneira de fortalecer o vínculo e de passar afeto e cuidado, enfim, dar acolhimento a esse bebê que está chegando a este mundo.
“O desmame precoce, seja por falta de experiência da família, da mãe e às vezes, infelizmente, das pessoas que deveriam ajudar essa mãe a vencer as primeiras dificuldades, se constitui numa variável muito importante para romper o vínculo. Entre mães que não amamentam a terceirização é muito mais frequente e o vínculo é frequentemente muito mais frágil, com todas as consequências que acabo de relatar neste artigo.”
Por isso, ando pelo nosso país, exortando pediatras, famílias, políticos e administradores a se preocuparem com esse assunto. Eu estou convencido de que uma das causas da extrema violência que estamos vivendo em nossa sociedade não é só falta de dinheiro, de trabalho e de comida, é sim falta, principalmente, de afeto e de carinho. De cuidado gentil e amoroso de mães que amamentaram seus filhos com muita atenção e carinho e se não conseguiram por algum motivo fazê-lo, não os abandonaram, não os terceirizaram e não os entregaram para outras pessoas cuidarem deles, principalmente nos primeiros meses de vida.
Ser pediatra é pensar muito em prevenção e é ser, antes de tudo, um clínico geral de crianças, um cuidador que se enternece com a infância.
José Martins Filho – Professor titular, emérito, de pediatria da Unicamp. Presidente da Academia Brasileira de Pediatria, Conselheiro do Programa “Criança, prioridade absoluta”, do Instituto Alana de São Paulo – SP.
Publicado na Revista Pediatria dia a dia – agosto de 2016, p.12-15.
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