Filipa escolheu a hora do jantar para conversar com a filha, depois de cumpridas as rotinas de final do dia e num momento em que estavam sozinhas. Inês tinha oito meses quando os pais se separaram e não se lembrava de algum dia o pai, com quem tem uma boa relação, ter algum dia vivido lá em casa. E até já conhecia bem o Luís, o namorado da mãe, que entrou na vida dela antes de fazer três anos, com dois «irmãos» mais velhos que logo a adotaram. Mas Filipa não conseguia prever a sua reação à ideia de passar a viver a três, em casa de Luís.
Inês ia fazer cinco anos, a mudança implicava sair do centro de Lisboa para uma zona rural, obrigava a trocar de escola e a ficar mais longe da prima, que era também a melhor amiga. «Escolhi as palavras, tentei explicar-lhe a situação, mas sempre sem dramatizar. Queria que ela percebesse que ia ser uma coisa importante, que ia mudar a nossa vida, mas que ia ser uma coisa muito boa», explica Filipa. «Sabes, Inês… nós vamos viver para casa do Luís», disse-lhe às tantas. Inês estava estupefacta: «Ah… Mas e, então, e ele? Vai para onde?…», perguntou.
A resposta não podia ser mais imprevisível. «Soltei uma gargalhada», diz Filipa. A ideia de que o plano era mesmo irem viver lá com o Luís nem sequer passava pela cabeça da filha. Apesar disso, Inês adaptou-se bem, mesmo com rotinas alteradas: passou a ver o pai só aos fins de semana e a fazer, com a mãe, novos programas como ir à praia ou apanhar musgo para o presépio mesmo à porta de casa. «A Inês tem uma coisa espantosa, é fascinada pela mudança, tem uma capacidade de adaptação incrível», explica a mãe. O que não quer dizer que nalguns momentos do percurso não tenham surgido atritos. «Ela sentiu muito a falta da prima, perguntava de vez em quando porque já não morávamos em Lisboa… e passados alguns meses passou a fazer algumas birras para chamar a atenção», conta Filipa. Problemas menores, que foram superados com um esquema de avaliação de comportamento com smiles desenhados numa folha colada no frigorífico.
O número de separações tem vindo gradualmente a aumentar. Em 2008, houve 60,4 divórcios por cada 100 casamentos, o dobro dos registrados no ano 2000, segundo o Instituto Nacional de Estatística. As novas famílias são, por isso, uma realidade. A questão dos namorados/as quase nunca se coloca de imediato, explica a jurista Margarida Vieitez, do Espaço Família. «Embora possa parecer estranho, a maioria dos casamentos que se dissolve não é por causa da existência de uma terceira pessoa», assegura. Mas na hora de apresentar o namorado da mãe, ou a namorada do pai, ou de decidir voltar a viver junto ou casar, as dúvidas surgem. Como devem, então, os pais reagir? «Não há regras, cada criança é um mundo. Mas existem linhas orientadoras», explica a psicóloga Melanie Tavares, do Instituto de Apoio à Criança (IAC). Respeitar o ritmo dos mais novos é uma delas. «Quando as crianças fazem perguntas é porque já têm ideia de que aquele é um amigo que a mãe ou o pai gostam muito. Depois, à medida que a relação vai evoluindo, respeitando sempre o ritmo da criança e a forma como aceita o outro, é mais
fácil introduzir a questão, explicar que é o namorado, ou a namorada», diz.
Filipa contou sempre com o apoio do ex-marido. Ele também achou que seria uma boa mudança para Inês e conversou com ela sobre as vantagens da nova vida no campo, bem pertinho da praia, na casa do namorado da mãe. «Sempre que possível, é bom que o ex-cônjuge possa dar uma ajuda nas alturas de mudança, para que os miúdos sintam a segurança de que o outro não é uma ameaça, que continuam a ter um pai e uma mãe. A ruptura conjugal não tem que ser uma ruptura parental. O ideal seria que os cônjuges conseguissem agir sempre no superior interesse da criança», sublinha a psicóloga.
OS MIÚDOS PRIMEIRO
Alexandra não tem qualquer dúvida sobre isso. «O mais importante sempre foram os meus filhos», diz. Esteve três anos sozinha e depois de superado o divórcio, sentia-se feliz na vida que fazia a três, com os dois filhos, a Mariana e o Manuel. «Não havia espaço na minha vida para mais nada, sentia-me muito preenchida emocionalmente. Mas depois apareceu o Sá…», conta com um sorriso. O início da relação foi lento e a relação com os filhos foi sendo construída aos poucos. Alexandra começou por confessar haver um amigo na faculdade onde trabalha que gostava muito da mãe e Mariana, na altura com 10 anos, acabou por revelar-se uma facilitadora do processo. «E tu, mãe, gostas dele?», atirou, fazendo gaguejar Alexandra. «Podias ir jantar com ele mãe. Vai, tu és nova. Eu e o Manuel ficamos com a avó», ouviu, espantada. «O Manuel, tinha três anos e mal percebia, só me lembro de querer muito estar ao colo dele e de ele, de facto, lhe ter dado muito colo…», conta.
Os convites do namorado sucediam-se e Alexandra verificava com orgulho que quase sempre previam a presença dos filhos, mesmo quando se tratava de ir ao cinema. «Mãe, ficas tão bonita quando vais sair com o Sá, vê-se que estás feliz…», repetia-lhe Mariana. Rendeu-se, deixou-se apaixonar, passaram mais três anos, juntou-se (tem casamento marcado para Novembro) e teve entretanto mais dois filhos, a Maria e a Madalena, que vieram completar a família. «O Sá é uma pessoa especial. Vai-lhes ensinando valores e enriquecendo-os, sem forçar a barra.
O Tiago continua a ser o pai. Mas ele é o amigo que fala na hora certa, que compra os livros da escola, que vai muitas vezes por trás e explica à Mariana que a mãe até tinha razão no que disse…», explica.
MANTER AS ROTINAS
A psicóloga clínica aconselha aos pais a usarem o bom senso e de alguma prudência. «Uma amigo/a é, normalmente, bem-vindo. Quando passa a namorado/a ocupa um espaço maior no sofá, na cama, em casa e, consequentemente, na relação», explica. O tempo contou a favor de Alexandra. «Começámos a namorar e só passado um ano é que ele entrou lá em casa. E quase de biquinhos de pés…», explica. Depois, o namorado acabou por aparecer de manhã para levar os filhos à escola e à noite tocava à campainha para curtas visitas. «Às vezes, acabava por dormir lá em casa, no sofá da sala», conta. Ficou um dia, depois um fim-de-semana e as coisas foram acontecendo, naturalmente.
«As crianças são o ser que melhor se adapta a tudo. Ao contrário do que os adultos pensam, racionalizam muito. E gostam de ver os pais felizes. Só têm é que sentir que a sua relação pai-filho não está ameaçada», diz Melanie Tavares. E, para isso acontecer, é preciso manter algumas rotinas. «Os miúdos têm que sentir que perante o pai ou mãe são o principal. É importante, se a mãe fazia um passeio ao fim da tarde com eles, não deixe de o fazer», explica.
GERIR O TEMPO
Para Alexandra, assessora de comunicação a tempo inteiro e mãe de quatro filhos, o conselho da psicóloga não é fácil de cumprir. A família aumentou e as rotinas tiveram que ser alteradas. Mas ainda hoje se esforça por dar mais atenção a quem mais precisa a cada momento. «A Mariana chega muitas fezes da faculdade – tem 18 anos e estuda Arquitetura – às tantas da manhã e acorda-nos para explicar as maquetas e falar um bocadinho no quarto. Estamos com sono, mas nunca lhe digo que não. É o único momento que ela tem só dela. Os irmãos não a vão interromper, a Madalena não está a chorar…», conta.
Também inverteu o percurso das idas e vindas à escola para dar algum tempo ao Manuel para conversar com ela sozinho no carro. E faz questão de convidar os amigos dele ao fins de semana e de prepararem um bolo «porque vem o amigo dele». Alexandra usa pequenas estratégias de compensação, com decisões tomadas no momento. «No dia em que a Madalena nasceu notei o Manuel muito nervoso, ia ter uma prova no dia seguinte no liceu e estava ansioso. Eu não podia sair da clínica, por ter feito uma cesariana. Mas expliquei ao Sá e ele foi dormir a casa nesse dia…», conta.
OS MEUS FILHOS E OS TEUS
«Se a criança experimentar, no decorrer do seu desenvolvimento pessoal, disponibilidade para uma comunicação clara e autêntica, colo e atenção, reunirá condições internas favoráveis à boa gestão de conflitos», lembra Leonor Bento Fialho. Mas «quando existem filhos de ambas as partes, o espaço ocupado é ainda maior e em dimensões diferentes. Esta situação corre o risco de ser mais problemática do que quando só um do par tem filhos (mais arriscado se é filho único)», alerta a psicóloga clínica. Foi assim com Carla, hoje com 35 anos. Tinha oito anos quando os pais se
separaram e nove quando conheceu a namorada do pai. «Um dia fomos a uma festa e a minha tia levou ‘uma amiga’. No dia seguinte o meu pai perguntou-me como é que tinha sido e eu disse-lhe: ‘Foi giro… e a amiga da tia é tua namorada!’», conta a rir.
As lembranças das visitas que se seguiram, a casa da namorada do pai, são porém menos divertidas: «Ela tinha um filho dois anos mais velho que o meu irmão mais novo, o Marco, que tinha um bocadinho “síndrome de filho único” e gostava de fazer gato e sapato dele. E eu defendia muito o meu irmão, era muito protetora e… às vezes, batia-lhe à grande», confessa. O pai procurava não se intrometer, ou fazia-o sem se fazer notar, e isso magoava-a. «Acho ainda hoje que teria sido mais saudável ter posto logo os pontos nos is, mesmo pondo em risco a relação», afirma.
Até na aproximação ao padrasto, com quem tem hoje uma relação muito forte, Carla recorda ter manifestado algumas reticências. «Fomos almoçar e ele gozou comigo por ter as unhas pintadas e eu lancei-lhe um olhar fulminante – ele ainda hoje conta isso», diz. Depois, lembra-se de que não lhe apetecia ir ter com ele, só ia porque a mãe a obrigava. «Os afetos não se constroem de um momento para o outro e as crianças não estão apaixonadas. Precisam de tempo para conhecerem e para se adaptarem», sublinha Margarida Vieitez. A psicóloga Melanie Tavares concorda, e explica: «A criança tem que aceitar o namorado da mãe ou a namorada do pai, – a pessoa que este escolheu. Mas não tem que simpatizar com ela, nem deve ser obrigada a interagir com quem não gosta, a brincar quando não lhe apetece brincar…»
São frequentes as situações de rejeição do namorado/a provocadas quando os ex-cônjuges interferem negativamente ou quando as mães deixam que os filhos (acontece muito com os rapazes) tomem o lugar de homem da casa. «É normal que o queiram fazer, mas não é saudável e
não deve ser alimentado», sublinha a psicóloga do IAC. Também frequente é as mães puxarem os filhos demasiado para si no pós-divórcio, levando-os a dormir consigo e a ter todas as atenções. «Se a criança tem uma relação privilegiada que de repente se quer alterar, ela vai achar que o culpado é o novo elemento», alerta.
FAMÍLIA ALARGADA
Paulo tem 39 anos e uma filha de 12 a quem apresentou no mês passado a namorada que conheceu uns meses largos após o divórcio, há oito anos. Foram todos almoçar a casa dos avós e nas férias vão voltar a estar juntos. «Acho que ainda é cedo para estarmos só os três e que a presença dos avós ajuda. Se ela nalgum momento não se sentir muito confortável, tem sempre pessoas à volta com quem pode sentir-se mais protegida», explica o pai. Depois de um divórcio doloroso, Paulo foi muito cauteloso com a filha, com quem está dia sim, dia não. Esperou quase sete anos e um dia disse-lhe: «Se calhar um dia destes, vou ter uma namorada, o que achas?» E conseguiu ficar surpreendido com a resposta: «Tu é que sabes, pai. A vida é tua…» «E vais tratá-la bem?», ainda perguntou. «Se ela me tratar bem…», disse-lhe Sara, com simplicidade.
DIVÓRCIOS AUMENTAM
O número de divórcios tem vindo a crescer nos últimos anos. Em 2008, houve 60,4 divórcios por cada 100 casamentos, segundo os números do Instituto Nacional de Estatística, divulgados no portal Pordata. Cinco anos antes, este número situava-se nos 40,1, o que significa um crescimento de 18,3 por cento desde 2003. A duração média de um casamento em Portugal é atualmente de 14,3 anos, o que significa que a maioria dos
casamentos acaba quando já existem filhos em comum.
Publicado no site:
http://www.paisefilhos.pt/index.php/familia/monoparental/3052-namorado-da-mae-namorada-do-pai
Acesso em 16/07/2014
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