“Nunca pude, ao longo de toda minha via, resignar-me ao saber parcializado, nunca pude separar um objeto de estudo de seu contexto, de seus antecedentes, de seu vir -a -ser. Tenho aspirado sempre a um pensamento multidimensional, nunca pude eliminar a contradição interior. Sempre senti que as verdades profundas, antagonistas umas das outras, eram para mim complementares, sem deixarem de ser antagônicas. Nunca quis reduzir a força da incerteza e da ambiguidade.”
Esse é um recorte de um discurso proferido por Edgar Morin, grande pensador francês, ao ser homenageado pela Universidade de Sonora, no México, em 2004. Morin relembrava a necessidade de uma maior vinculação entre as diferentes ciências, se pretendemos atingir o objetivo de entender o ser humano. Ciência e tecnologia não apenas trazem grandes benefícios para a humanidade, mas também, grandes complexidades.
Quando falamos em modernização da sociedade e diferentes modelos de família não podemos mais pensar de maneira simples. Precisamos do conhecimento de várias formas do saber humano, como sociologia, antropologia, psicologia, política, economia, ecologia, física quântica, comunicação, religião e tantas outras, com suas diferentes áreas.
Para entender a família do ano de 2018 temos que ter em mente o contexto em ela foi se moldando ao longo do tempo. Instituições são construções históricas modificadas pelo tempo, e assim também podemos entender o nosso conhecimento. Se ousarmos abandonar o que já sabemos, o que temos como certo até o momento, chegaremos num lugar de não saber, que nos tornará curiosos e interessados em aprender, a estudar, a abrir novas janelas para arejar nossas certezas. Certezas absolutas são doentias e levam a julgamentos preconceituosos, perigosos e injustos. Abrir-se ao novo, procurar entendê-lo dentro de um contexto maior que o de nossos desejos, equivale a um salto de qualidade que pode se tornar o Ponto de Mutação para cada um de nós. Aqui cabe um alerta: abandonar o que conhecemos não significa perder nossas referências e valores e ficarmos num limbo sem rumo. Conhecimento é inclusivo: o novo se agrega ao já existente.
A disponibilidade de abrir caminhos para conhecer as diferentes faces de um fato é uma forma de estarmos conectados com a tão falada complexidade. Complexidade nada tem a ver com dificuldade, mas com a aceitação da premissa de que tudo que é complexo possui muitos níveis e que todos são verdadeiros. Sabemos que a verdade tem muitos lados.
Gostando ou não, somos seres humanos vivendo num contexto dinâmico em que movimentos de pessoas, produtos, serviços e até mesmo ideias, rompem (muitas vezes velozmente) fronteiras e abrem novas perspectivas. Tudo acontecendo ao mesmo tempo, interligado num contínuo circular onde começo e fim, causa e efeito não são identificáveis ou importantes. Não há vácuo entre o ontem e o hoje, portanto, juntamente com nossos antepassados somos construtores da história e do tempo em que vivemos, assim como com, ou através, de nossos filhos e netos faremos parte do que será construído amanhã e depois. Somos autores e atores da nossa história, que junto com outras milhares e milhares de outras, nos tornam coparticipantes e corresponsáveis de um tempo dividido apenas pedagogicamente para explicar determinados acontecimentos.
Nossa coexistência dinâmica e evolutiva abriga novos paradigmas, criados por seres humanos e compartilhados entre eles, e não por extraterrestres. Comportamentos que causam indignação e grande impacto, e que popularmente são rotulados como crise, nada mais representam que a vida em evolução.
Em economia há um chavão que diz “para sobreviver é preciso inovar” e em nome desse saber, empresas e prestadores de serviços buscam novos e diferentes conhecimentos que as conduzam o mais próximo possível à otimização de seus recursos para terem sucesso.
Em relacionamentos familiares e sociais, diariamente, cada indivíduo de diferentes idades, nível cultural, educacional, econômico ou religioso, em todos os lugares deste nosso planeta, está exposto a variáveis mutantes do mundo exterior. Somos bombardeados por fatores externos de que forma maior ou menor nos afetam em vários níveis e acabam por determinar nosso comportamento. Este, por sua vez, influencia em muitos níveis outras pessoas, tecendo uma trama de relações inter-relacionadas intensa e infinita. Tomemos por exemplo as sempre atualizadas pesquisas de marketing que utilizam as ciências do comportamento para entender consumidores (todos nós) e seus comportamentos. Através desses estudos sabem com grande precisão como nos comportamos ao escolher, comprar, usar e descartar tudo o que necessitamos ou desejamos. Sabem também que esses comportamentos mudam quando estamos em grupos ou representamos organizações e etc, e assim, desenvolvem estratégias que nos influenciam direta ou indiretamente.
É importante que cada indivíduo, família, comunidade ou sociedade tome consciência de que são objeto e objetivo de estudos de todas as áreas do conhecimento. Sim, é verdade que vivemos num mundo mutável, confuso, e para alguns, até mesmo assustador. Morin há muito nos fala da incerteza como companheira dos tempos atuais.
Se estes são os ingredientes que temos hoje, façamos com eles refeições substanciosas que possam nos sustentar nos diferentes caminhos que temos a percorrer. Família, ainda que se apresente em diferentes configurações ainda são definidas pelo grau de comprometimento afetivo e responsável que permeia as relações de seus membros. E essa é uma das grandes razões que nos leva a confiar e fortalecer valores e ética comum dentro de uma visão e missão generosa e respeitosa de vida. Somos parte de um todo e caminhamos juntos. Mudanças aconteceram e acontecem em ciclos da vida; cabe a nós aperfeiçoá-las, adaptá-las ou mesmo ignorá-las, mas não temos o poder de deter a vida em evolução. Caminhar é preciso, e os caminhos são os que temos à nossa frente, sempre diferentes dos já percorridos.
Que nosso caminhar de hoje e amanhã seja cercado por árvores e flores de valores e ética firmes e possua espaço para abrigar o novo e o diferente à luz da generosidade e respeito. Desejo que estas reflexões sirvam de base para deliciosos e proveitosos passeios sobre novos domínios do saber infinito sobre a arte do (con) viver. E deixo como despedida palavras doces de Fernando Pessoa, homem sábio e poeta atemporal:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas…
Que já têm a forma do nosso corpo…
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares…
É o tempo da travessia…
E se não ousarmos faze-la…
Teremos ficado…
Para sempre…
À margem de nós mesmos…”
Regina Célia Simões de Mathis, Terapeuta de Casal e de Família, Presidente do Conselho de Educadores – EPB
Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Revista do Congresso, SP, junho de 2018, p. 22-24.
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