Medicalização da educação

Prezado leitor, quero junto contigo, apontar alguns questionamentos e refletir sobre sofrimento infantil, fracasso escolar e medicalização da educação e da infância. No transcorrer de minha atividade profissional, atuo como Consultora Educacional e Psicóloga, realizando encaminhamentos, provenientes das escolas, relacionados a questões de sexualidade, uso e abuso de álcool e outras drogas, cultura de paz e violência. Neste universo, o uso de drogas, a dificuldade de concentração, a falta de respeito e a agressividade são as situações mais comuns dentro de nossas escolas envolvendo alunos, pais e profissionais da educação.  Para nossa reflexão, pretendo me deter nos pontos relacionados à falta de respeito, dificuldade de concentração e agressividade.

Sabemos que a criança é um indivíduo em desenvolvimento, inserido em um contexto social criado e gerenciado por adultos. Ou seja, ela nasce em um mundo pronto, com leis, regras e normas sociais no qual ela precisa ser orientada, guiada. Sendo assim, cabe aos adultos desenvolverem sua personalidade por meio de orientação e do exemplo. Principalmente o exemplo, pois na primeira infância, essencialmente, aprendemos muito mais com imagens do que com palavras. A família é o primeiro núcleo social em que a criança está inserida e principal instituição responsável pelo desenvolvimento saudável ou patológico da criança. O segundo núcleo é a escola. Ambas inseridas em um sistema social, conforme dito anteriormente, criado e gerenciado por adultos. A história desse sistema não deve ser desconsiderada ao se pensar sobre infância, educação, saúde, sofrimento, medicalização.

Segundo Cardieri, no artigo: Definir Limites na Perspectiva dos Pais, publicado nos anais do 45° Congresso da Escola de Pais, as estruturas de família, de organização escolar, das fábricas e das relações religiosas expressavam padrões de uma organização vertical da sociedade, que apresentavam papéis e funções referenciais e apontavam ideais de atuações e perspectivas de vida. Esse modelo foi inspirado na modernidade, com padrões baseados na racionalidade, objetividade e orientou todo o funcionamento da sociedade industrial. O psicanalista Jorge Forbes (2000 apud Cardieri 2009) nomeia essa sociedade de “pai orientada”. O que modificou esta estrutura foram processos internos, a dinâmica do mercado, o progresso da ciência, a expansão da tecnologia, pois estes elementos produziram efeitos nas relações sociais e interpessoais (Cardieri, 2009). 

Diante desta mudança no sistema, caberiam mudanças no sistema de ensino também, porém:

Em vez de revolucionar o ensino e sua estrutura, o Ocidente prefere, pelo contrário, remediar os efeitos das anomalias geradas por um ensino inadequado à nossa época. Remediar os efeitos significa, neste caso, encarregar a medicina de responder onde o ensino fracassou. (Mannoni, 1988, p. 62 apud Guarido, 2007).

A manutenção do  status quo vigente, sem mudanças na estrutura do sistema, tende a desencadear a medicalização de indivíduos evitando assim que os reais problemas sejam solucionados. Por exemplo, uma família que cria seus filhos sem impor limites na educação, muitas vezes tem problemas educacionais com as crianças na escola. No entanto, a criança é encaminhada para avaliação e muitos profissionais, sem conhecer a sua realidade, atribuem um diagnóstico de Hiperatividade e lhe tratam com remédios, porém a família não recebe as devidas e necessárias orientações.

O discurso médico difundido na mídia leiga, em forma de artigos simplistas que naturalizam o sofrimento da criança e seus ‘problemas de aprendizado’, apresenta-se atualmente na escola de forma marcante. É comum que professores e coordenadores professem diagnósticos diante da observação de certos comportamentos das crianças, especialmente de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e as encaminhem para avaliação psiquiátrica, neurológica e/ou psicológica. É comum também que agentes das equipes escolares insistam em perguntar aos pais, quando se encontram diante de alguma manifestação não conhecida (ou não desejada) de uma criança que está em tratamento, se ela foi corretamente medicada naquele dia. Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (Cardieri, 2009).

Em termos terapêuticos, as terapias cognitivas, de tradição behaviorista, são as únicas atualmente aceitas como válidas pelo saber médico. Assim, vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio de saber médico-psicológico sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de consideração da subjetividade que não a normalizante e de ‘treinamento’. (Guarido, 2007).

Que o campo educativo esteja invadido pelos discursos técnicos, não é novidade. A cientificização dos discursos sobre a criança desde o início do século XX contribuiu não somente para a construção de um discurso pedagógico normalizador, mas também para a validação de um saber sobre a criança no campo das especialidades: psicologia, fonoaudiologia, psicopedagogia, psiquiatria etc.

Os trabalhos de Maria Helena Souza Patto, além disso, discutiram amplamente a produção do fracasso escolar, como fruto dos efeitos de discriminação das classes trabalhadoras, justificada pelo discurso científico psicologizante:

Como regra, o exame psicológico conclui pela presença de deficiências ou distúrbios mentais [leia-se hoje transtornos mentais] nos alunos encaminhados, prática que terá resultados diferentes de acordo com a classe social a que pertencem: em se tratando de crianças da média e da alta burguesia, os procedimentos diagnósticos levarão a psicoterapias, terapias pedagógicas e orientações de pais que visam a adaptá-las a uma escola que realiza os seus interesses de classe; no caso de crianças das classes subalternas, ela termina com um laudo que mais cedo ou mais tarde, justificará sua exclusão da escola. Nesse caso, a desigualdade e a exclusão são justificadas cientificamente (ou seja, com pretensa isenção e objetividade) através de explicações que ignoram a sua dimensão política e se esgotam no plano das diferenças individuais de capacidade. (Patto apud Patto, 2000 p. 65)

Algumas mudanças significativas na Educação têm ocorrido depois do início da defesa da Educação Inclusiva, algo que deve ser anotado, mas que não será discutido neste momento.  Se, por um lado, os profissionais da Educação se veem destituídos de sua possibilidade de ação junto às crianças pela hegemonia do discurso das especialidades, pela formação inadequada e falta de conhecimento sobre técnicas que podem auxiliar no trato com crianças e adolescentes; por outro, ao assumir e validar os discursos médico-psicológicos, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos.

Outro ponto importante a se destacar é observado por um grande educador brasileiro, Anísio Teixeira. Segundo ele, a presença cada vez maior da ciência em nossas vidas trouxe consigo uma nova mentalidade, determinando uma nova ordem das coisas, de que nada é estável, mas sim tudo está sempre mudando, não há alvo fixo e a experimentação científica é um método de progresso ilimitado. Essa nova dinâmica possibilita ao homem sentir, fazer o “progresso”. Esse processo tem se intensificado e modificado nossa percepção sobre o tempo. Queremos tudo de forma rápida, como se todos os problemas pudessem ser resolvidos em um passe de mágica.

Em outras palavras, uma criança está em processo de desenvolvimento, buscando se inserir em um mundo por ela desconhecido. Se ela não se concentra, se não trata bem seus colegas, família e professores, basta dar um remédio ou colocá-la em frente à televisão, ao computador, para que ela se torne tranquila e o “problema” estará resolvido. Dessa forma, não será preciso dar exemplo, não será preciso que eu, adulto reveja meus conceitos, meu modo de agir e reflita sobre as mensagens que estou passando a meus filhos, alunos, crianças e adolescentes com quem convivo.

Certamente, existem casos que precisam de tratamento, de acompanhamento, de remédios para um desenvolvimento saudável, mas não podemos nos esquecer do que é ser criança, do que é ser adolescente e, acima de tudo do que é SER HUMANO. Esse processo é de eterna aprendizagem, permeado por situações de conflitos, de erros e acertos.

Referências

CARDIERI, Anais do 45° Congresso da Escola de Pais. 2009.

GUARIDO, Renata. A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação 2007.

PATTO, M. H. S. Para uma crítica da razão psicométrica. In: _____. Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política. São Paulo: Edusp, 2000.

Este artigo foi publicado na revista Escola de Pais do Brasil – Seccional de Biguaçu, nº 4, maio de 2012, p. 32.

 Camila Detoni Sá de Figueiredo – Consultora Educacional, Especialista em Psicologia Clínica – CRP 12/05423, Presidente da Escola de Pais do Brasil Seccional de São José.

1 Comentário

  1. Querida Camila,
    Sua observação crítica está muito bem esboçada na estrutura escola X medicalização X processos educacionais. Divulgue mais o seu trabalho, pois esse conteúdo merece uma abordagem mais ampla na mídia. Beijos, abraços e muita saudade… Denise.

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