Lei seca

Quem edita a legislação pátria são nossos eleitos: vereadores, deputados, e senadores. Cada qual em sua esfera de ação. O texto em si de uma Lei quem aprova são eles, mas quem as aplica, são os julgadores: juízes, desembargadores e ministros. Cada qual em seus Tribunais. São os julgadores que atestam a aplicação ou não na vida real do cidadão, o que o legislador criou nos gabinetes. Em princípio, deveria haver um “casamento” entre a criação e a sua finalidade. Mas a cada tempo, muita legislação criada não sai do papel. É o que comumente se diz “lei morta”, ou seja, sua criação fica no âmbito das ideias e sua aplicação beira ao ineficaz.

 Uma lei que entendemos como ineficaz é a vulgarmente conhecida como “Lei Seca”, que especifica em seu preâmbulo a intenção de criação do legislador como sendo a de punir o motorista que dirige sob efeito de álcool. Mas de fato, no mundo real, não o faz. Ela não consegue punir os infratores. E explico o porquê.

 A Lei Seca define a embriaguez ao volante como crime. Mas crime que só pode ser punido quando o infrator alcançar uma medida de álcool. Foi criado um número, uma medida que deve ser aferida por um equipamento ou por um exame de sangue para se dizer quando um condutor está ou não embriagado.

Esse atrelamento entre o crime de embriaguez e a necessidade de uma medida a ser comprovada dificulta a punição ao infrator, bem como reduz o campo de ação do agente de trânsito, pois sua palavra como autoridade que visualiza o crime não é reconhecida. O mesmo ocorre com o testemunho do médico. Sua palavra não é aceita como prova de embriaguez ao emitir seu laudo clínico. A nova Lei especifica que para ser configurado crime, a embriaguez só pode ser comprovada com o uso do bafômetro ou de exame de sangue. E, diante destas duas únicas formas de comprovação do crime ora em comento, as quais estão diretamente ligadas a “vontade” do embriagado, o sucesso de punição a ele se desvencilha da real intenção do legislador na medida em que o condutor, as olhos vistos embriagado, se recusa a fazer os testes exigidos.

O embriagado, na maioria das vezes, não tem condições de responder por ele próprio. Suas ações e atos ocorrem pela completa falta de possibilidade de seu corpo responder a comandos. Não só o corpo físico está dissociado da vontade e fora de controle, assim como também a consciência do embriagado lhe falta.  Como então deixa o legislador a critério da “vontade” do criminoso em realizar ou não procedimentos que atestariam a ingestão de álcool na direção de veículo? Qual crime de nossa legislação consta como pré-requisito de punição que as provas passem pela vontade do criminoso? Ele pode sim apresentar provas de sua inocência, e o bafômetro é prova que ele pode apresentar quando não estando embriagado assim é acusado. 

O STF decidiu na última semana: só são válidos para atestar o crime de embriaguez ao volante as provas de mensuração através do bafômetro e ou exame de sangue. Os julgadores decidiram de forma técnica, nos termos da lei, seguindo doutrinas jurídicas. E, apesar de ser um Tribunal que tem possibilidade de fazer entendimentos políticos, sociais e em função da segurança nacional, optou por devolver ao legislador a responsabilidade por definir medidas de quantidade para atestar o crime de embriaguez. O Tribunal foi legalista.

 A embriaguez é estado visível aos sentidos humanos. É visto pelos olhos, sentido pelo olfato e sinalizado na fala. É um estado de alteração comportamental ao qual não é necessário nenhum tipo de exame comprobatório. A simples prova testemunhal por si só deveria bastar. Imagina você sofrer um acidente, ter um parente seu ferido ou até morto, visualizar o causador do acidente em visível estado de embriaguez e ele sequer processado for.

Para os agentes que trabalham com trânsito, a Lei Seca é desmotivadora. Presenciam condutores cambaleantes, com forte odor etílico, olhos avermelhados, com fala desconexa e não podem criminalizar tal comportamento porque o legislador exige uma medida. O legislador não veio às ruas, não passou um dia numa rodovia federal tendo testemunho de vidas interrompidas, de famílias desfeitas, de pessoas mutiladas. Diante de um condutor embriagado e suas ações de morte, pode apenas o agente de trânsito aplicar uma multa. Diante de uma cena de acidente, com vidas perdidas, o agente tem de implorar ao condutor embriagado, por sua vontade em assoprar o bafômetro ou realizar um teste de sangue. E pergunto: quem vai fazê-lo? E pior, sente-se o agente um verdadeiro “bobo da corte” porque ele tá diante da prova, seus olhos veem, seu olfato sente, a cena do acidente diz! E ele nada pode fazer. No máximo, o condutor embriagado fica a pé. É muita impunidade diante daquele que zela pela segurança no trânsito.

O condutor embriagado não pode ter tantos direitos. A mesma proporção de direitos que estão lhe sendo dados é a mesma proporção de vidas que ele pode interromper quando na condução de um veículo.

No fundo, todo esse cenário legislativo nos permite inferir: a quem realmente se destina esta “Lei Seca”? A que interesses ela tenta proteger? Ou, existe alguma classe social que se beneficia da legislação da forma como ela se apresenta hoje? A quem ela quer proteger? Por que a autoridade autuadora está aqui diminuída em sua aplicação da legislação se a maioria dos crimes de trânsito que ela visualiza são tipificados com a simples afirmação da existência do tipo. O tratamento que a comunidade internacional dá aos condutores embriagados é a cadeia!

Precisamos discutir a prevalência do direito individual sobre o coletivo. Precisamos discutir o direito de dirigir embriagado em relação à vida. O legislador precisa adequar seus comandos a uma realidade de milhares de vidas perdidas, a um sem número de mutilados, a um gasto nos serviços de saúde que compromete o atendimento de outras enfermidades. O direito à vida deve ser sopesado ao direito das provas.

A legislação, da forma com que está redigida hoje, beneficia o infrator e não a sociedade. Esse mesmo legislador contribui para que a impunidade prevaleça sobre o crime, algo que a sociedade já não consegue mais tolerar.

Este artigo foi publicado na revista Escola de Pais do Brasil – Seccional de Biguaçu, nº 4, maio de 2012, p. 34

Naiara Vicentini – Psicóloga, Graduada em Direito.

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