Família: a dança entre as forças de pertencimento e autonomia

Penso família como um sistema vivo de relações afetivas, formando uma unidade em movimento através do tempo social e afetivo. Não se constitui como uma soma de seus membros, mas como um tecido constituído pelas memórias, esquecimentos, lealdades invisíveis, débitos e créditos, que borda o lugar de cada ser na trama transgeracional daquele grupo e da sociedade onde está inserido.

Compreendo que o ser humano ao nascer é recebido, na maior parte das vezes, por um grupo familiar para que se socialize e se torne participante do jogo social. Penso que o bebê ao nascer tem a possibilidade de tornar-se humano. Recebê-lo é ter o compromisso de humanizá-lo!

No entanto de que humanidade estamos falando?

O que acreditamos como humano?

A que ética relacional estamos nos referindo?

Margareth Mead, em seus estudos nas sociedades primitivas da Polinésia mostrou uma coerência entre o macrocosmo, representado pela sociedade, e o microcosmo, representado pela família.

A sociedade prepara os indivíduos que necessita para que possa se perpetuar! Assim uma sociedade que necessita caçadores de cabeça construirá modelos vinculares que formem esses guerreiros competitivos e implacáveis; uma sociedade de consumo e do espetáculo criará modelos vinculares que privilegiarão o fazer e o ter e não a intimidade, pois os valores a transmitir são a transitoriedade e a ostentação, como pontuam Bauman (2007) e Birman (2009).

Quando pergunto de que humanidade estamos falando, quero devolver a coautoria da construção de valores da sociedade a cada família e cada ser humano que dela participa.

A transformação da compreensão linear de causa e efeito dos eventos humanos, para a percepção da circularidade relacional, nos liberta do lugar de conservar e repetir, e inaugura a possibilidade de sermos construtores de alternativas, escolhendo a matriz cultural e emocional que queremos transmitir para as próximas gerações.

Acredito que não podemos pensar o evento humano sem olharmos duas dimensões em interseção: a matriz cultural ampla e a matriz afetiva e emocional particular da qual cada indivíduo faz parte.

Lembremos Bowlby (1989) com seus estudos que colocaram os olhos no processo profundo da formação dos vínculos primários, falando de forma perturbadora da plasticidade do bebê na interação com o adulto significativo e da constituição, a partir dessa vivência, do que chamou “modelos de apego”. Winnicott (1975), Stern (1977), Safra (1999) trouxeram maravilhosas contribuições nessa direção. Moreno (1978) ampliou essas reflexões com o conceito de que somos recebidos ao nascer por uma matriz predominantemente cunhadora ou predominantemente originadora. Melhor dizendo, por espaços afetivos e sociais que, cunham o indivíduo para não apresentar nenhuma originalidade, como moedas que não podem apresentar defeitos, ou espaços que ajudam a construir a singularidade do ser. Lembremos que não existem modelos “puros”, mas com forças predominante cunhadoras ou originadoras.

Convidemos Bowen(1979) que pertence aos primórdios dos estudos sobre família e suas forças transgeracionais.  Segundo o autor ao nascermos somos recebidos por nosso grupo de pertencimento na maior parte das vezes, ou em grupos de adoção, no que denomina “massa indiferenciada do eu familiar”, de onde precisaremos sair paulatinamente do estado de fusão e indiferenciação em direção à individuação e autonomia. Sabemos que o processo nunca é completamente concluído, pois as crises emocionais, sociais e afetivas nos levam novamente a momentos mais fusionais. Vamos trazer para essa roda Marisa Japur (2007), que contribuiu de forma riquíssima, ao enfatizar que cada encontro humano significativo oferece uma oportunidade de ampliação e constituição de nossos selves, ou seja, de nossa percepção e descrição de quem somos para nós mesmos e para os outros.

Cada encontro é uma construção de possibilidades que passam a nos constituir.

Assim, nesse caleidoscópio, chegamos ao título de nossa palestra: a dança entre as forças de pertencimento e autonomia.

Quero trazer minha crença em uma sociedade cuja matriz seja predominantemente originadora, onde a autonomia nascerá do pertencimento e o pertencimento autorizará a singularidade.

Algumas perguntas… para refletir…

Nas famílias podemos peregrinar nos caminhos transgeracionais, abrindo espaços para novos significados, que nos libertam de heranças familiares que nos cunham em missões que não nos legitimam em nosso processo de individuação?

Podemos desenvolver um olhar para o “legitimo outro” como nos ensina Maturana (2004). Reconhecemos uma ética relacional horizontal, onde nossa humanidade se conecta com a existência do outro, semelhante a nós em suas necessidades e diferente de nós em seus anseios?

Podemos legitimar as diferenças que frustram nossos desejos com nossos colegas, parceiros, parceiras, filhos, filhas, vizinhos, amigos…?

Nossos modelos afetivos estão fundados no processo de cunhar ou principalmente na capacidade de reflexão crítica da história?

O que consideramos lealdade familiar? Os laços invisíveis repetitivos, a contabilidade das obrigações transgeracionais como estudou Nagy (1983) ou a formação de novas gerações legitimadas e que legitimam as diferenças, e que valorizam a cooperação como a força humana que enfrenta as dificuldades?

A dança entre as forças de autonomia e pertencimento podem criar uma coreografia onde o eu de cada um possa ir nascendo do nós ao mesmo tempo que eu e nós se entrelaçam, se constituem e se diferenciam?

Qual o lugar que oferecemos a nós e aos outros, outras, em cada conversação da qual participamos cotidianamente?

Respire, feche os olhos e pergunte. Qual a cultura que estou construindo em minhas relações sociais e amorosas?

Pertencimento pede hospitalidade!

Autonomia abre espaço para a individualidade.

Nós, seres que iniciamos a vida tão vulneráveis, dançamos essa coreografia do começo ao final da experiência humana.

Pertencimento, hospitalidade, cooperação, autonomia.

REFERÊNCIAS:

Bauman, Z. Vida Para Consumo – Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Birman, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Boszormenyi-Nagy, I.; Spark, G. M. Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu, 1983.

Bowen, M. De la familiar al indivíduo. Barcelona: Paidós, 1979.

Bowlby, J. A teoria do apego. Porto Alegre: Artmed, 1989.

Colombo, S. F. Em busca do sagrado. In: Cruz H. M. (org.). papai, mamãe, você e eu? São Paulo: Casa do Psicólogo,2000.

Colombo, S.F. Autonomia Versus Pertencimento – uma Interrogação IN: Castanho, G-M; Dias, M.L. (org.) Terapia de Família com adolescentes – São Paulo: Roca, 2014.

Colombo, S.F. Como ouvimos nossas crianças. IN: Cruz, H.M. (Org.) Me Aprende? São Paulo: Roca,2012.

Japur, M. Sobre um eu que também é você. In: Nova Perspectiva Sistêmica, 2007, XIV (27):9-19.

Maturama, H,; Zöller,G. Amar e brincar- fundamentos esquecidos do humano São Paulo: Palas Athenas, 2004.

Safra, G. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo: Sobornost, 2006.

Stern, D. A constelação da maternidade. Porto Alegre: Artmed, 1997.

Winnicott, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Sandra Fedullo ColomboAssistente social, formada pela PUC em 1967, tendo se especializado em terapia de família e casal com Carmine Saccu, Maurizio Andolfi e Mony Elkaïm, trabalhou em várias instituições e em consultório particular desde 1972. É co-fundadora do Instituto Sistemas Humanos (2000) sendo sua presidente. É professora, interlocutora clínica e coordenadora do Ponto de Encontro, grupo de terapeutas de família que nasceu em 2001 para estudar os desafios do atendimento de casais e famílias dentro do pensamento construcionista social.  Desenvolveu como voluntária um projeto de interlocução institucional, inclusão cultural e inclusão digital, dentro da Creche Naia de 2001 a 2016.

Participou de várias publicações sobre terapia de casal e família, separações e recasamentos, luto, desenvolvimento da pessoa do terapeuta e terapia familiar com crianças e adolescentes. Organizou e escreveu: “Ainda existe a cadeira do papai?” e “Gritos e sussurros, intersecções e ressonâncias: Trabalhando com casais”. Foi presidente da Associação Paulista de Terapia Familiar e da Associação Brasileira de Terapia Familiar e co-organizadora do VII Congresso Brasileiro de Terapia Familiar.

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