Este grupo de interesses foi pensado e trabalhado com o objetivo de refletir sobre os efeitos estressores da convivência transgeracional na atualidade e, também, sobre as possíveis e diferentes formas de minimizar o desconforto familiar frente às mudanças no ciclo de vida, em especial às relacionadas ao momento em que filhos e netos perdem o conforto de serem cuidados, para se tornarem responsáveis pelos cuidados de seus pais e/ou avós idosos.
Em nossa vida familiar estamos envolvidos, desde o nascimento até a morte, num entrelaçamento de gerações que traz em si todas as possibilidades de realizações, ao mesmo tempo que contém o poder de frustrações. Cada geração tem funções e responsabilidades específicas e seu funcionamento é condicionado pelo contexto social e histórico em que vive. Nem sempre as pessoas se preparam para a “perda da inocência”, para o choque direto com a realidade que está implícito em nosso ciclo vital: a complexidade das relações compreendidas entre o nascimento e morte, com os ganhos e as perdas que compõem o viver humano.
Um dos vários e valorosos ensinamentos advindos do budismo nos traz a palavra impermanência como um ensinamento de vida e é através dela que podemos aprender o funcionamento e a dinâmica da nossa existência; cotidiamente experenciamos um referencial que está sempre em mudança: nós mesmos, e o nosso entorno. Poderíamos juntos, neste momento em 2009, levantar uma enorme e quase inesgotável lista de modificações ocorridas no mundo, que tiveram influência direta sobre a vida e o modo de pensar e sobreviver de nossos antepassados recentes que nasceram e viveram no início do século XX. Quase todos nós temos ou tivemos a oportunidade de ouvir histórias contadas por avós ou bisavós que presenciaram e festejaram a troca dos românticos (para nós) e trabalhosos (para eles) lampiões de gás pelos benefícios da eletricidade – e que hoje, na era da informática, convivem com netos e bisnetos que podem conhecer antes de seu nascimento através da ultra-sonografia tridimensional. Não é nossa intenção neste momento discutir os ônus e bônus trazidos pelos avanços científicos e tecnológicos, mas sim, procurar entender a relação entre os comportamentos individuais dentro do grupo familiar, em constante transformação.
O olhar e referencial teórico que apóia este trabalho tem o viés de nossa formação e experiência como Especialista em Terapia Familiar Sistêmica. Assim, entendemos família como um sistema de interação que abriga e articula dentro de si vários componentes individuais, que influenciam e são influenciados recursiva e circularmente. Isso significa que entendemos uma pessoa como um sistema individual, uma família como um sistema composto por dois ou mais subsistemas individuais e uma comunidade como um sistema constituído por subsistemas de famílias, empresas, escolas, grupos religiosos e outros; que estas comunidades reunidas formam sistemas- municípios, que juntos formam sistemas-cidades, que juntas formam sistemas-estados, que juntos formam sistemas-países, que juntos, formam sitemas-continentes, que juntos formam o nosso sistema planetário, que junto a outros forma o cosmos… e que todos, e cada um desses sistemas, são independentes e interdependentes. Outra característica importante dos sistemas é que trazem em si a característica de transformação, por isso dizemos que são sistemas vivos e reagentes a mudanças internas e externas. Quando sob tensão, mudam sua dinâmica, em busca de um novo equilíbrio.
Contemporaneamente a responsabilidade dos cuidados do sistema familiar com seus idosos pode ser vista, salvo exceções, como um fator de estresse: os núcleos familiares estão menores e vivem em locais separados, quando não distantes; lutam por progresso financeiro, cultural e pessoal, a longevidade humana está estendida, e a velocidade das mudanças, que julgamos controlar, nos afasta do conceito de impermanência da vida. Nosso afastamento desse conceito faz com que sejamos surpreendidos por momentos de mudança inevitáveis do ciclo de vida. Um desses momentos é a chegada da chamada velhice, ou envelhecimento biológico, que traz inúmeras mudanças para o idoso e seu grupo familiar, e tem como consequência uma inevitável troca de papéis e de responsabilidades dentro do grupo familiar.
Consideramos útil a referencia e distinção de algumas terminologias e informações que dizem respeito ao idoso: GERIATRIA é o ramo da medicina que se ocupa com os aspectos biológicos (doenças) do idoso; GERONTOLOGIA é o ramo da ciência que estuda o processo de envelhecimento e os múltiplos problemas que envolvem o idoso. PUERICULTURA é o conjunto de técnicas empregadas para assegurar o perfeito desenvolvimento físico, mental e moral da criança, desde o período da gestação até a puberdade; SENECULTURA tem os mesmos princípios, voltados para a pessoa idosa. SENILIDADE: pessoa velha, senil, portadora de doenças; SENESCÊNCIA: processo de envelhecimento, declínio da capacidade funcional do organismo; é uma fase normal da vida de um indivíduo sadio.
No Brasil, no início do século XX, 575 mil pessoas haviam passado dos 60 anos; no censo de 2000 eram 14,4 milhões, ou 8,6% da população. Em 2025, teremos a maior população de idosos do mundo: uma projeção de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, que representarão 15% da população total. A expectativa de vida, em 1900 era de 34 anos; em 1950, 43,3 anos; em 2000, 68,6 anos e temos uma projeção de 72 anos/média de vida para o ano de 2020. Em 100 anos, o brasileiro dobrou sua média de longevidade, sem que houvesse planejamento e implementação de políticas públicas específicas para essa população idosa emergente, o que faz com que nos deparemos com consequências de várias ordens: econômica (aposentadoria, diminuição da renda, mais gastos com saúde), política (Política Nacional do Idoso – Lei 8842, de 1994- e Estatuto do Idoso) e sociocultural (marginalização social, insuficiência familiar, institucionalização e violência contra o idoso).
A família, aqui entendida como um subsistema social, também não se preparou para a longevidade de seus membros. É certo que os avanços da ciência que tornaram possível essa maior longevidade, também trouxeram formas de envelhecimento confortáveis e dignas. Não raro nos deparamos com pessoas de 80 anos, ou mais, que desfrutam de boa forma física e mental, mantém todas as suas capacidades preservadas e são vistas como alicerces de suas famílias. Muitos sequer se dão conta de que são considerados idosos, segundo o critério de corte etário adotado pela ONU (Organização das Nações Unidas), que tornou consenso a idade de 60 anos ou mais, para definir idosos em países em desenvolvimento, e a idade de 65 anos ou mais para os naturais de países desenvolvidos; também definiu como muito idosos pessoas com mais de 80 anos.
Todos nós, em algum momento de nossas vidas nos deparamos com diferentes casos ligados à senescência. Esta não é uma porta em que todos entram automaticamente ao completar 60 ou 65 anos e pela qual não podem mais sair; senescência é um processo idiossincrático, particular de cada indivíduo. Ao longo da vida, e da senescência, encontramos várias portas e por elas podemos entrar e também sair. Esse processo, se olhado individualmente, não nos permite definir um ponto exato de transição para o envelhecimento, uma vez que velhice não pode ser definida por um simples critério cronológico, e que o declínio das funções orgânicas varia não só de um órgão para o outro como também entre idosos da mesma idade.
Considerando a idiossincrasia da senescência e para que possamos continuar nossa conversa utilizando um mesmo referencial, vamos tomar como referência a definição de envelhecimento usada por Papaléo, em 1996: “um processo dinâmico e progressivo no qual há modificações morfológicas, fisiológicas, bioquímicas e psicológicas que determinam perda progressiva da capacidade de adaptação do indivíduo ao meio ambiente, ocasionando maior vulnerabilidade e maior incidência de processos patológicos que terminam por levar à morte”. Podemos então entender que o processo de envelhecer nos leva a caminhos que apresentam alta vulnerabilidade, uma grande gama de variabilidade e quase nulas possibilidades de reversão. Ainda hoje apenas poucos indivíduos atingem a velhice na sua plenitude, podendo usufruir plenamente os ganhos advindos do passar dos anos; percentualmente a grande maioria ocupa a faixa dos que passaram por mudanças de estado civil (viuvez), de categoria social (decorrente da aposentadoria), e por muitas outras perdas significativas (morte de amigos e parentes próximos); além disso, vêem seus antigos papéis sociais serem esvaziados ou mesmo se tornarem ausentes, e muitas vezes têm consciência da irreversibilidade de seu declínio corporal; geralmente sentem dores e têm medos inespecíficos, que agravam o que a baixa autoestima.
Voltando ao raciocínio de sistemas, e conectando-o com o ciclo de vida das famílias, podemos agora refletir e avaliar o impacto que a senescência daqueles que amamos, que nos cuidaram e deram conforto e segurança, traz para todo o grupo familiar. Mesmo sendo um momento conhecido do ciclo de vida, a senescência pode ser vista como um subsistema no grupo familiar: um membro novo, inesperado, surpreendente e indesejado, que exige contínuas mudanças na dinâmica de cada família. Sua chegada inaugura o entrelaçamento do ciclo de vida de três sistemas independentes, interdependentes e evolutivos, que se relacionam de forma altamente complexa: o idoso, a família e a senescência. A consciência das consequências do envelhecimento, como parte de um processo de vida, tem seu próprio desenvolvimento, interage com o desenvolvimento do indivíduo que envelhece e também com o do grupo familiar a que pertence.
Não raras vezes, em algum momento, a senescência traz um outro subsistema que vai modificar mais uma vez a dinâmica familiar: a doença. Quando uma doença crônica se instala em uma família, estas enfrentam desafios e carregam fardos pesados às vezes até então desconhecidos. Sem opção, vêm-se obrigadas a acolher um novo membro, esse novo subsistema – doença, e ficam impactadas e atordoadas pelo choque da nova realidade; necessitam buscar novos conhecimentos, fazer novos arranjos de estrutura e de papéis familiares. Passam a ficar frente à frente com preocupações financeiras; têm que enfrentar a natureza exaustiva dos cuidados constantes e pontuados por crises; testemunham e experimentam a dor e a tensão se instalando ou sendo ampliada entre cônjuges, pais, irmãos; sem querer ou se dar conta, podem negligenciar as necessidades dos outros membros da família, causando ou amplificando frustrações, ressentimentos, e passam a desenvolver um tipo de comunicação pouco efetiva e afetiva, além de outras tantas e novas formas de deteriorização da antiga dinâmica de seu grupo familiar.
A senectude tem seu próprio curso e sua fase crônica pode durar décadas, portanto requer do sistema familiar forças, atitudes e mudanças significativas, tanto no nível prático como afetivo. Tarefa crucial nesse momento: a manutenção de máxima autonomia para todos os membros da família perante o impulso para a mútua dependência e cuidados.
Quando a família não possui ou não pode contar com recursos para lidar com novas situações, abre caminho para mais um indesejável e desastroso sistema que, sem cerimônia, se instala: a crise. Temos então um quadro formado por sistemas e subsistemas que se entrelaçam caoticamente: INDIVÍDUO, FAMÍLIA, SENESCÊNCIA, DOENÇA E CRISE.
A fase de crise inclui qualquer período sintomático antes do diagnóstico concreto, quando o indivíduo ou a família sente que alguma coisa está errada, mas a exata natureza e o alcance do problema não estão claros. Inclui também o período de reajustamento e manejo depois que o problema for diagnosticado.
São conhecidos vários componentes importantes em relação à senectude, que variam de família para família: crenças, significado, planejamento médico na crise, capacidade de prestar cuidados, a comunicação orientada para a doença, a capacidade de solução de problemas, a flexibilidade na substituição de papéis, o nível de envolvimento afetivo, o apoio social e da família ampliada, e a disponibilidade de acesso a recursos da comunidade. Há algumas tarefas práticas universais desta fase como: aprender a lidar com a dor, com a incapacitação ou outros sintomas relativos à doença; aprender a lidar com os procedimentos terapêuticos relativos à senectitude; estabelecer e manter bons relacionamentos com a equipe cuidadora: geriatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e cuidadores em geral. E existem tarefas complementares e importantíssimas para a família: criar um significado para a senectude que maximize a preservação de um sentimento de domínio e competência; entristecer-se pela perda da identidade familiar pré-senectude; buscar uma posição de aceitação da mudança permanente; manter um sentimento de continuidade entre seu passado e seu futuro; unir-se para conseguir a reorganização da crise a curto prazo e, perante a incerteza, desenvolver a flexibilidade no sistema, tendo em vista objetivos futuros. É uma fase em que todos perdem: os idosos, seu funcionamento físico e/ou mental, seus antigos e valorizados papéis e responsabilidades, seus sonhos e até mesmo a visão de possibilidades futuras; as famílias passam a sentir-se “diferentes”, “azaradas”, incompetentes, injustiçadas, exaustas, e por vezes, paralisadas.
Quando o grupo familiar passa por este processo há a eleição, consciente ou não, de um novo papel também para outro membro da família, que passa a assumir o papel de “cuidador” responsável, ou principal. Considero muito importante lembrar aqui a necessidade de “cuidar dos cuidadores”. Como os idosos, eles sofrem uma enorme pressão para mudança e adaptação a novos momentos estressantes.
Cuidar dos cuidadores significa procurar modos de manter uma qualidade de vida que permita a sobrevivência saudável para todos. A vida daquele que se dispôs a, ou foi levado a ser, “o” cuidador, não pode mudar totalmente em função das novas tarefas que deve assumir, sob o risco de se afastar de suas bases e enfraquecer. O estado geral da pessoa responsável pelos cuidados pode piorar conforme o tratamento que dá a si mesmo.
Os limites da família do cuidador deverão existir em dois planos:
1- intelectual – cuidadores têm que definir limites realistas em termos do que podem fazer para ajudar, e aceitar suas limitações;
2- emocional – reconhecer como naturais suas emoções de raiva, frustração, culpa, vergonha, medo, cansaço, e outras, e não brigar com seus sentimentos.
Importante lembrar que há alguns cuidados que o cuidador deve fazer por si e para si próprio: um dos principais para sofrer menos, é buscar compreender e aceitar que o que está acontecendo é inevitável. Alguns outros:
– procurar definir limites daquilo que deve ser preservado em sua vida pessoal,
– determinar o que pode ser feito, e tocar uma tarefa de cada vez,
– evitar querer controlar tudo,
– recrutar parentes e amigos para ajudar,
– tirar folgas e procurar um substituto para suas tarefas,
– aceitar convites de amigos: não se afastar deles, pois representam um valioso suporte emocional. Amigos podem nos ouvir, fazer rir, distrair…
– procurar frequentar um grupo de apoio especializado,
– procurar não perder o senso de humor,
– nutrir a autoestima,
– e, acima de tudo, ser generoso consigo mesmo.
A autoestima é a chave que nos possibilita sair de situações aparentemente sem soluções, que encoraja ou desencoraja nossos pensamentos e sentimentos e que nos afasta da paralisia emocional.
Nathaniel Brandem (1995) nos mostra os seis pilares que a fundamentam:
1- VIVER CONSCIENTEMENTE: “compreender é saber que o sentido poderia ser outro” (Foucault). Quando não compreendemos o que está acontecendo nos tornamos vítimas, somos transformados em objetos, e apenas sofremos os efeitos de causas ocultas, misteriosas, sempre vistas como mais fortes do que nossa capacidade de resistir e superar. Vale a pena tentar compreender meu ambiente e o mundo que me circunda.
2- AUTOACEITAÇÃO: é ver-se como tendo valor próprio. Exige reflexão sobre os “porquês” que nos levam a ter atitudes que antes considerávamos indesejadas e inapropriadas. Aceito a realidade dos meus problemas, mas não sou definido por eles.
3- AUTORRESPONSABILIDADE: sou o arquiteto da minha vida. “Não me envergonho de mudar, porque não me envergonho de pensar”. Mudar significa capacidade de assumir falhas e corrigi-las. Sou responsável por minhas escolhas e meus atos.
4- AUTOAFIRMAÇÃO: não é intransigência nem agressividade, é aceitar ser o que se é, com qualidades e defeitos. É viver sem precisar esconder ou falsificar a si mesmo, para poder ser aceito pelos outros. Tenho o direito de considerar importantes meus pensamentos, sentimentos e minhas ações.
5- INTENCIONALIDADE: “nenhum vento sopra favorável quando não sabemos para onde queremos ir”. Não podemos perder de vista nossos objetivos, nossos sonhos, nosso potencial. Devemos procurar autonomia, ter disciplina, perseverança, organização e crença em nós mesmos. Se quero vencer, preciso estar atento para os resultados dos meus atos.
6- INTEGRIDADE PESSOAL: exige ser autêntico e cobrar dos outros aquilo que cobramos de nós mesmos. Admitir nossas falhas, sem culpar os outros. Entender aquilo que fazemos. Reconhecer nossos erros e pedir perdão. Reparar os danos causados. Comprometer-nos em agir no futuro de forma diferente. Devo honrar meus compromissos.
Para encerrar, convido a todos a continuar esta reflexão sobre a impermanência e os ciclos de vida pessoal e familiar, procurando fazer conexões com os pilares da autoestima que devemos preservar.
Se não acreditarmos em nós mesmos nem em nossa competência e bondade, o universo pode parecer assustador. A autoestima não é um presente que precisamos apenas desejar. Possuí-la, representa várias conquistas ao longo do tempo. QUE ESTE SEJA GENEROSO PARA TODOS NÓS, EM TODOS OS SENTIDOS !!!
REFERÊNCIAS
AS MUDANÇAS NO CICLO DE VIDA FAMILIAR: Uma estrutura para a terapia familiar/ Betty Carter e Monica McGoldrick – 2ª. Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
TERAPIA FAMILIAR MÉDICA: Um enfoque biopsicossocial às famílias com problemas de saúde/ Susan H. Mc Daniel, Jeri Hepworth e William J. Doherty – Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
AUTOESTIMA E SEUS SEIS PILARES/ Nataniel Brandem – São Paulo: Saraiva, 1995.
CUIDANDO DO CUIDADOR – Apostila – Adalberto Barreto- Ceará, 2000.
Regina Célia Simões De Mathis – Terapeuta Especialista em Casal e Família, Terapeuta Comunitária; Membro da Coordenação, Docente e Supervisora dos Cursos de Terapia Familiar e Terapia Comunitária da Universidade de São Paulo – UNIFESP, e da Escola de Sociodrama Familiar Sistêmico – ESOFS. Membro do Conselho de Educadores da Escola de Pais do Brasil.
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