Esse pequeno artigo é, na verdade, uma grande propaganda do livro de João Anzanello Carrascosa, intitulado “Caderno de um ausente” (Cosac Nayf, 2014).
Faço essa propaganda explícita do livro porque é um belo texto lírico que ao mesmo tempo em que nos inquieta, também nos mobiliza a pensar na relação pais e filhos, filhos e pais e pais, filhos e família, diante da fatídica ausência de uns e/ou outros nessas complexas redes de relações que tentamos tecer cotidianamente. Nuns dias mais fáceis, noutros mais difíceis.
Começo dizendo que Carrascoza é um excelente escritor. Digo isso não porque ganhou prêmios importantes, como o Jabuti e outros. Ele é excelente porque mexe conosco, porque nos faz refletir sobre a vida e, neste livro, particularmente, nos convida e pensar na nossa relação com os filhos.
“Caderno de um ausente” é uma conversa virtual de um pai de meia idade com sua filha recém-nascida, Beatriz, narrada de forma poética e agradável. Mas ao mesmo tempo é tão contundente e desmobilizadora que nos tira da zona de conforto. Bom, não direi quase mais nada sobre o conjunto do livro para que você, leitor, tire as suas próprias conclusões e sofra da mesma catarse. Vou me limitar a extrair algumas passagens que mexeram muito comigo, como pai, pensando nas minhas ausências com meu filho.
No livro, o pai está preocupado com a filha, pois já está com mais de meio século de existência e com as ausências que provocará ao morrer, enquanto a filha estiver crescendo. O livro tem, ainda, uma série de páginas em branco e algumas palavras igualmente em branco que iniciam períodos e parágrafos do texto que insinuam, penso, as coisas não ditas, as ausências que produzimos na vida e educação dos filhos.
Pois é, quantas vezes nos ausentamos… quantas vezes não dialogamos… quantas vezes somos tomados pelo furor da acelerada vida contemporânea e provocamos ausências… e algumas acho que são irreparáveis. Às vezes, quando meu filho me diz algo que me surpreende ou assusta, logo penso: “Eis aí, nos meandros dessa fala, a presença da minha ausência… as páginas em branco que deixei”. Se eu estivesse lá, talvez pudesse ter tentado, como diz Carrascoza, “humildemente, te ensinar umas artes que aprendi, colher a miudeza de cada instante, como se colhe arroz nos campos”.
Carrascoza me faz pensar que os pais, além de responsáveis pela vida material dos filhos por um longo tempo, são também responsáveis por uma certa visão de mundo que incutem ao educar ou (des)educar. Por isso, é preciso fazer escolhas; sobretudo porque são muitos os apelos do mundo contemporâneo, principalmente, as mórbidas investidas de um narcisismo irrefreável e uma absurda descartabilidade de tudo e de todos. Neste caso, é preciso ser combativo, ser uma espécie de pai militante, que não esconde o mundo, mas que deixa clara sua opção por um determinado tipo de sociedade, de vida e de alteridade. E é aí que mora o problema. É que por vezes as páginas ficam em branco porque nos ausentamos, deixando para a mídia, em geral, e para as novelas e redes sociais, em particular, a escrita ausentada. E isso tem consequências nefastas na formação dos filhos. Não que reneguemos a mídia, a tecnologia, as novelas e as redes sociais, mas é preciso estar também aí, presente, como contraponto, como daimon, como diziam os gregos, que na cultura cristã virou o anjo da guarda ou o alter ego da psicanálise.
É claro que não podemos proteger os filhos dos furacões, das frustrações e tempestades do mundo… nem de nós mesmos. Mas podemos estar lá, presentes, mesmo estando ausentes fisicamente, presentes simbólica ou espiritualmente.
Seria extremamente confortador pensar que meu filho, antes de tomar uma decisão ou emitir algum julgamento, pensasse: “O que meu pai diria ou pensaria disso?” Digo isso não no sentido egoísta de querer que ele pense como eu, mas que me tenha como presença na sua vida enquanto interlocutor, ao menos para dizer que eu estava errado ou superado sobre isso ou aquilo.
E você leitor, já pensou em suas ausências com seu filho ou filhos?
Já parou para pensar em quem está preenchendo a escrita das linhas que você está deixando em branco?
Pois é, fiz agora com você o que Carrascoza fez comigo… pensar nas risadas que demos, nas brincadeiras e passeios que fizemos, nos filmes que assistimos, nas brigas e encrencas venturianas, enfim, no que foi dito e feito; mas o que agora me incomoda não é isso, mas as presenças das ausências que deixei.
Caro(a) leitor(a), à guisa de palavras finais, deixo umas linhas de Carrascoza que bem poderia nos servir a tod@s, não é acha?
…não é por acaso que te escrevo, filha [filho], eu sou a tua perda futura, e, hoje, de súbito, dei para inventariar uns bens perdidos…
Lidnei Ventura – Graduado em Pedagogia, Mestre em Educação, Doutorando em Educação, Professor do CEAD/UDESC, Colaborador da Escola de Pais.
Artigo publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccional da Grande Florianópolis nº 6, junho de 2015, p. 21.
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