O hábito acadêmico sempre nos leva a, antes de desenvolver um determinado tema ou assunto, fazer a conceituação dos principais termos que serão citados no decorrer da abordagem.
Porém, abordar o tema família conceituando-o, parece-me incompatível para o próprio entendimento do termo. Tentar uma descrição de “famílias” parece-me mais pertinente. Mas não se preocupe que não me proponho a tão avançada e complexa tarefa nesse momento!
Na verdade, gostaria de iniciar apenas com a caracterização de família a partir de dois aspectos básicos e universais, culturalmente falando: os papéis básicos do pai, da mãe e dos filhos, e os tipos de vínculo estabelecidos, a saber, o conjugal (casal), o parental (pais/filhos) e o fraterno (irmãos).
A complexidade que envolve conceituar família pode ser explicada, em parte, pelas inúmeras transformações que impuseram ao homem uma nova forma de estar no mundo: a evolução da comunicação de massa, o avanço científico no campo da reprodução humana, dentre outros.
A nova organização social que solicitou a presença da mulher no mercado de trabalho afastou-a de casa e promoveu a terceirização da educação inicial da criança desde a mais tenra idade. Tal fato afastou o modelo familiar nuclear do espaço de único e imperativo na formação da subjetividade humana.
Ao passear um pouco pelo desenvolvimento da família, constata-se que estes mesmos dois aspectos eleitos para caracterizá-la – papéis básicos e tipos de vínculo – que são defendidos como “naturais” da família nuclear, não são capazes de traduzir o termo em tempos anteriores. Ocorre que o entendimento do que vem a ser uma formulação familiar atualmente, foi sendo estruturado e reestruturado com o passar dos tempos, da história da humanidade, e atravessado pela transversalidade da cultura.
A família tradicional tinha como função principal a transmissão da vida, dos bens e dos nomes. Os casamentos, que eram arranjados, aconteciam entre pessoas bem jovens. A vida pública prevalecia sobre a vida privada e a intimidade. No século XIX, a perspectiva romântica da vida conjugal caracterizou a família moderna. O bem-estar dos filhos era a grande preocupação da mãe, a “rainha do lar”. Freud e a Psicanálise provocaram uma quebra de paradigmas no final do século XIX com a formulação do inconsciente como o centro psíquico do homem, fazendo com que a família contemporânea construísse uma nova visão de homem e de humano. Os movimentos feministas e de afirmação dos direitos da mulher acompanharam a ascenção da prática do divórcio, das recomposições familiares e das uniões de caráter não-estável. Mas é nesta nova configuração familiar estabelecida no núcleo pai-mãe-filhos, intactas ou reconfiguradas, que se dá a transmissão significativa de valores éticos, morais, de educação, de comportamento, de modelos, e sempre pelo contato emocional.
Este modelo familiar nuclear pai-mãe-filhos foi se estabelecendo e se fortalecendo. Conquistou instâncias jurídicas garantidas constitucionalmente (Art. 227 da Constituição de 1988). O novo Código Civil (Lei 10.406 de 2002) garante e reconhece a união estável como entidade familiar, amplia o entendimento de “filho”, garante seus direitos em diversas configurações, e promove a paternidade/maternidade responsável no sentido de fazer prevalecer o contato com o pai e com a mãe em arrumações familiares pós-divórcio. Exemplo disso é a Lei 11.698 de 2008 que rege as condições para a prática da guarda compartilhada, ou seja, a participação equilibrada dos pais e das mães na criação e educação dos filhos.
Diante da constituição da família nuclear estabelecida a partir dos vínculos parentais e da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, os conflitos ultrapassados pelos pais na educação dos filhos não deixaram de se manifestar. A voracidade das exigências sociais fazem com que os pais realmente acreditem que devam preparar seus filhos para o “vale-tudo” da vida exigindo-lhes esforços muitas vezes superiores aos alcançáveis por eles. O resultado é o sofrimento de toda a família.
As superagendas infantis ocupam as crianças em tempo integral no contraturno escolar, fenômeno observado em todos os níveis socioeconômicos da sociedade atual. O discurso de que “precisamos nos preparar muito para a vida” faz com que se venda o entendimento de que os filhos são realmente incapazes de enfrentá-las sozinhos. A criança acaba por se tornar uma pessoa sem confiança e com baixa autoestima porque estas pressões interferem negativamente no desenvolvimento intelectual e emocional delas.
Ao mesmo tempo, observamos uma ambivalência das expectativas parentais: os pais superexigem de seus filhos para que eles os superem profissional ou economicamente, enquanto esta superação pode ser entendida como ameaçadora da autoridade que os pais deveriam exercer sobre os filhos.
Os projetos pessoais dos pais são depositados em seus filhos como se estes fossem uma extensão de si. O resultado é que essas crianças não são livres para praticarem suas próprias escolhas e não aprendem que ser livre para escolher significa responsabilizar-se pelas consequências implicadas nesta escolha.
Nós da Escola de Pais, assim como todos aqueles que se dispõem de alguma forma a trabalhar com crianças e suas famílias, precisamos nos sensibilizar com estas novas demandas sociais para sermos capazes de apresentar respostas significativas a fim de preencher as lacunas do processo educacional praticado pelos pais e pelas mães que nos procuram, seja qual for a composição familiar que eles nos apresentem.
*Patrícia Moura Ribeiro da Silva – Psicóloga e Psicopedagoga Infantil, Perita judicial em Varas da Família
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