Uso abusivo de álcool e outras drogas no ambiente escolar

A relação entre Psicologia e Educação no trabalho de promoção de saúde mental e desenvolvimento humano.

Dados da última Pesquisa Nacional de Saúde Escolar 2015 (PeNSE), realizada pelo IBGE sobre fatores de risco e proteção à saúde das(os) adolescentes, mostra que elas(eles) têm feito uso de drogas lícitas e ilícitas cada vez mais cedo. Na média, o primeiro contato com o álcool ocorre aos 12 anos de idade. Já no caso das substâncias ilícitas, houve um aumento no percentual de estudantes, que passou de 7,3% em 2012 para 9% em 2015. Entre os meninos, essa proporção era de 9,5%, e entre as meninas, 8,5%. Outro dado que chamou atenção das pesquisadoras foi que, do total das(os) entrevistadas(os), cerca de 110,5 mil estudantes relataram ter feito uso de substâncias ilícitas 30 dias antes da pesquisa.

Para a psicóloga Tatiana Amato, doutora e mestre pela UNIFESP e coordenadora na ABRAMD (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas), o trabalho de prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas pode ser beneficiado pelo campo de interação existente entre as áreas de educação, promoção da saúde mental e desenvolvimento humano. “Nessa interface, diferentes teorias da Psicologia podem ser adequadas para dar suporte à compreensão sobre as mudanças de comportamento que acontecem”, afirma.

“Geralmente profissionais da Pedagogia, ou mesmo da saúde que são constantemente convidadas a fazer prevenção, ficam bastante confusas com o uso dessas teorias sobre o comportamento humano. Acredito que esse seja um diferencial da formação da psicóloga e ao mesmo tempo um desafio, uma vez que tais práticas educativas precisam ser criadas respeitando o contexto multidisciplinar.

Para explorar um pouco mais sobre o tema, a DIÁLOGOS entrevistou a psicóloga Tatiana Amato, que realiza, ainda, pesquisa de pós-doutorado e é colaboradora do NEPSIS (Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias), da UNIFESP.

DiálogosComo a Psicologia pode contribuir com o trabalho de prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas nos contextos escolares e educacionais?

TATIANA AMATO: Há uma interface entre as áreas da educação, promoção de saúde mental e desenvolvimento humano na qual os programas de prevenção têm potencial para serem construídos. Nessa interface, diferentes teorias da Psicologia podem ser adequadas para dar suporte à compreensão sobre as mudanças de comportamento que acontecem. A maior parte dos programas disseminados internacionalmente são baseados em teorias de aprendizagem social, que em geral consideram que a aprendizagem ocorre por influência dos pares e por observação de comportamentos de grupos sociais onde o indivíduo se insere. No entanto, existem muitas teorias possíveis que podem ser adotadas, e fazer essa escolha é viável às psicólogas que foram elucidadas sobre a temática ao longo da sua formação profissional. Geralmente profissionais da Pedagogia, ou mesmo da saúde que são constantemente convidadas a fazer prevenção, ficam bastante confusas com o uso dessas teorias sobre o comportamento humano. Acredito que esse seja um diferencial da formação da psicóloga e ao mesmo tempo um desafio, uma vez que tais práticas educativas precisam ser criadas respeitando o contexto multidisciplinar. Nesse sentido, a atuação da psicóloga educacional de forma integrada às outras atividades e à formação de professoras da escola é fundamental.

A escola é o contexto que reúne características mais adequadas para que a educação sobre drogas seja feita, pois as(os) jovens passam parte significativa do período de desenvolvimento até a idade adulta e acompanhadas(os) por educadoras. Isso não quer dizer que a escola seja a principal responsável por promover mudanças de consumo de drogas nas(os) jovens. Além de programas educativos, políticas mais globais de regulamentação do uso de drogas geram maior impacto sobre os níveis de consumo da população.  Como se caracteriza a prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas em escolas no Brasil?

DiálogosQuais são os aspectos a serem aperfeiçoados nos modelos de prevenção mais disseminados?

TATIANA: É comum que as escolas adotem alguma metodologia de prevenção ao uso de drogas. A maioria oferece atividades esporádicas e pontuais, e acredito que a prática mais comum seja no formato de palestras. Algumas professoras associam aos conteúdos curriculares assuntos como sistema nervoso e sexualidade. Ainda é muito forte a estratégia do amedrontamento sobre as consequências do consumo para evitar que a(o) jovem experimente. Também é comum abordar o assunto com jovens que são flagradas(os) com bebida alcoólica ou outra droga, geralmente com punição à(ao) aluna(o) e responsabilização dos pais.

Tais estratégias precisam ser revistas, uma vez que já foram avaliadas com resultados preocupantes. As palestras avulsas não são agentes de transformação da realidade, uma vez que as(os) alunas(os) ficam passivas(os) diante da informação e geralmente não são ouvidas(os) em sua opinião. Se a mensagem é amedrontadora e com julgamento moral (ex.: “quem usa drogas não tem futuro”), muitas(os) nem sequer prestam atenção, em especial aquelas(es) que já iniciaram o consumo. A abordagem com as famílias também é carregada de culpabilização e afasta os pais da escola.

A educação sobre drogas precisa extrapolar a inibição do consumo e a mensagem do “saiba dizer não”. É fundamental que a educação não ocorra pela disseminação do medo sobre a droga nem pela estigmatização da(o) usuária(o). O medo não vai ajudar a(o) jovem a desenvolver uma visão realista sobre o assunto, tampouco garante que a pessoa fique longe da droga. Tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) como o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), nas suas diretrizes internacionais, não recomendam o amedrontamento, mas é difícil lidar com essa cultura que está enraizada na educação sobre drogas nas escolas, nas famílias, na mídia e nas diretrizes governamentais.

É fundamental que as(os) jovens sejam ouvidas(os) em sua diversidade de opiniões. A influência dos pares durante a adolescência é o fator mais relacionado ao consumo, por isso esse espaço de diálogo precisa ser usado. Há dez anos eu estudo a visão das(os) jovens sobre o uso de drogas e me encanto com a coerência das rodas de conversa, ENTREVISTA A EDUCAÇÃO SOBRE DROGAS PRECISA EXTRAPOLAR A INIBIÇÃO DO CONSUMO E A MENSAGEM DO “SAIBA DIZER NÃO”. É FUNDAMENTAL QUE A EDUCAÇÃO NÃO OCORRA PELA DISSEMINAÇÃO DO MEDO SOBRE A DROGA NEM PELA ESTIGMATIZAÇÃO DA(O) USUÁRIA(O). com a visão sobre os riscos do consumo que elas(eles) já possuem e como elas (eles) pensam em soluções aos problemas que acontecem. A função da educadora muda de detentora do conhecimento para mediadora do conhecimento que emerge. Como o assunto é pouco debatido, existem mitos que precisam de esclarecimentos, e é importante que a educadora esteja preparada para reconhecê-los. Assim, o diálogo acontece propiciando o desenvolvimento do olhar crítico às situações e não como uma lista de bons comportamentos a serem manifestos. O mesmo princípio pode ser usado nos diálogos com os pais. Antes de manifestar opinião, é necessário que a escola ouça o que os pais têm a dizer. Essas práticas de diálogo precisam preferencialmente extrapolar o assunto “drogas” para que tenham bons resultados. É essencial que muitos encontros sejam feitos.

Outro aspecto que precisa ser compreendido na prevenção é que fazer prevenção não é só falar sobre drogas. Ao melhorar habilidades de convivência por meio da educação emocional e comunicação, por exemplo, a prevenção também acontece. Mesmo que a palavra drogas não seja mencionada. Há muita possibilidade de atuação das psicólogas nessa área também.

Independente da abordagem, as ações preventivas precisam ser avaliadas, e isso quase não acontece no Brasil. O modelo americano do PROERD (Programa Educacional de Resistência às Drogas), oferecido pela Polícia Militar, talvez seja o programa de prevenção mais disseminado nas escolas brasileiras e não possui avaliação de curto e longo prazo. Um estudo breve foi feito em 2003, mas não mostrou resultados significativos. Precisamos mostrar o impacto das intervenções e cuidar para não reproduzir práticas que reproduzam os estigmas sociais e que possam estimular o consumo ou os problemas relacionados.

Pesquisa desenvolvida em seu doutorado buscou adaptar um programa australiano de prevenção ao uso de drogas na realidade brasileira. Segundo informações, as pesquisadoras australianas conseguiram reduzir em 20% o uso de álcool entre as(os) adolescentes.

DiálogosQuais foram as conclusões da sua pesquisa diante da realidade brasileira analisada?

TATIANA: No Brasil, o programa foi nomeado PERAE (Programa de Estímulo à Saúde e Redução de Riscos Associados ao Uso de Álcool Aplicado ao Ambiente Educacional). O nome original em inglês é SHAHRP (School Health and Alcohol Harm Reduction Project). O programa foi desenvolvido a partir das evidências científicas e da experiência das(os) jovens sobre o uso de álcool e seus problemas. As professoras passaram por formação de 16 horas, que pressupõe vivenciar o programa e desenvolver habilidades para trabalhar a temática na sala de aula. O PERAE é composto de oito aulas presenciais de cinquenta minutos que oferecem espaço às(aos) jovens para discutirem sobre o uso do álcool, com vistas a desenvolverem uma visão mais crítica sobre as situações que vivenciam. Recomenda-se a aplicação a partir do oitavo ano, quando a experimentação do álcool fica mais evidente.

A experiência brasileira mostrou que o programa foi bem aceito entre alunas(os) e professoras. Sobre a abordagem de redução de riscos, precisamos avaliar seus resultados ao ser implementada na educação brasileira. O estudo mostrou que é possível implementar essa abordagem, mas também mostrou que é necessário ter cuidado para que ela não seja distorcida. Como eu disse anteriormente, a cultura de educação sobre drogas no Brasil é outra. No lugar do “certo e errado” e do aconselhamento sobre o que a(o) jovem deveria fazer, a professora instiga as(os) alunas(os) a avaliarem as situações e as decisões que oferecem o menor e o maior risco. Nesse tipo de exercício, a professora precisa deixar seus julgamentos morais de lado para que possa ouvir com clareza, reconhecendo seus julgamentos. É bastante desafiador, mas as professoras que fizeram disseram que elas aprenderam a confiar mais no potencial de suas(seus) alunas(os) e perceberam que as(os) alunas(os) ficaram mais críticas(os). Isso foi muito valorizado pelas professoras e também pelas(os) alunas(os).

 Na Austrália e na Irlanda do Norte, foram conduzidos estudos com grandes amostras, e a avaliação dos resultados foi de três anos. Em ambos os países foram observadas reduções de consumo, inclusive nos episódios de embriaguez (redução de 19,5%) e de problemas decorrentes do uso de álcool (33%). Precisamos fazer estudos como esses no Brasil para avaliar o impacto nas(os) estudantes daqui. Por isso o material está sendo revisado, quanto mais adequado à realidade brasileira maior seu potencial de transformação da realidade. Para quem quiser saber mais sobre o programa, as informações e material didático podem ser requeridos gratuitamente pelo site www.nepsiseducacao.com.br.

DiálogosAlém da sua pesquisa, é possível citar outras iniciativas que buscam metodologias alternativas em prevenção ao uso de drogas?

TATIANA: Sim, são muitas iniciativas. Conheci escolas e experiências de universidades que já fazem trabalhos inovadores e outras muito abertas às mudanças. Precisamos cuidar da sistematização desse conhecimento. Há anos a SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas), em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), promove cursos a distância para formação de educadoras. As experiências das escolas estão relatadas no livro Experiência e pesquisa do PRODEQUI nos dez anos de formação de educadoras de escolas públicas para prevenção do uso de drogas (2004-2014). Em 2013 o Ministério da Saúde iniciou estudos com três programas internacionais para prevenção do uso de drogas no Brasil (1. “Programa Elos”; 2. “#tamojunto”; 3. “Programa Fortalecendo Famílias”), também com experiências relatadas em livro com acesso aberto Prevenção ao uso de drogas: implantação e avaliação de programas no Brasil.

Tais pesquisas e experiências práticas contribuíram muito para o avanço da ciência da prevenção no Brasil e também tornaram mais concretos os desafios para que possamos continuar avançando. Se eu fosse listar as principais áreas em que precisamos investir, eu incluiria: os materiais didáticos com conteúdos que façam sentido à realidade da escola brasileira; a formação de professoras; inclusão das famílias nos programas educativos e a avaliação das ações já realizadas. Nosso país é diverso e precisamos de diversidade na oferta de alternativas de educação sobre drogas. Ainda temos poucas. Assim, poderemos cuidar do contexto tão precioso à educação.

Tatiana Amato – Mestre e doutora pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Pesquisadora colaboradora do NEPSIS (Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias) da mesma universidade. Coordenadora dos grupos NEPSIS Educação e ABRAMD Educação São Paulo (ABRAMD – Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas).

Publicado na Revista Diálogos Ed. 11 agosto 2019, p. 123-128.  https://site.cfp.org.br

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