Um olhar além da superfície – Quem cuida do educador?

Entregar-se, ceder, conceder, dadivar, obsequiar, oferecer e presentear, estes verbos são sinônimos de doar-se.  Quando nos doamos já não somos somente nós, pois nos entregamos ao outro. Doar-se é uma arte.  Trabalhar com crianças é sobretudo estar em contato com esta arte, com suas emoções e também com as nossas o tempo todo. Emoção = ex + movere = mover-se para fora. Então quem se emociona faz um movimento de dentro para fora. É um revelar-se.  Um modo pelo qual eu quero que algo seja. Nessa constante comunicação e revelação, o educador traça um caminho: o de educar.  Educar, segundo Platão, “é dar a alma e ao corpo toda a beleza e perfeição de que são susceptíveis.” E no conceito de Rosseau, “é a arte de formar homens.” Tarefa árdua, que cabe a alguns profissionais que são sensíveis ao ato de cuidar.

Cuidar e educar estão fundamentados ao ofício e a excelência do verdadeiro educador, pois quando cuidamos, educamos; essa é a maneira mais saudável e motivadora para garantir o desenvolvimento da criança, envolvendo os aspectos físicos, emocionais, sociais e cognitivos. Sentir entusiasmo e ousadia de se construir um profissional com um perfil que se funde em experiências e competências pedagógicas, capazes de entender as necessidades e interesses das crianças em cada momento e a realidade vivida por elas.

Mas, o trabalho com as crianças exige que o educador trabalhe muito mais do que conteúdos, demanda cuidados básicos essenciais até conhecimentos específicos. Exige também uma formação bastante ampla e o profissional deve tornar-se ele também um aprendiz, refletindo constantemente sobre sua prática, dialogando com as famílias de seus alunos e buscando informações necessárias para o desenvolver do trabalho.

Mas todas essas exigências e dos dissabores provocados por essa tarefa árdua, como a constante desvalorização do profissional educador, a atuação em salas de aula lotadas, exposição ao barulho dentro e fora da escola, o desrespeito, o acúmulo de turmas em vários colégios, o excesso de pressão dos gestores, entre outros fatores podem causar bem mais do que frustração e desânimo, acentuando-se ao receber o contracheque no final do mês. A falta de infraestrutura e de condições de trabalho é considerada uma das principais causas de doenças que afetam o magistério. Provocam males que atingem o corpo e a mente, retirando a cada ano milhares de profissionais das escolas. Ou seja, esse profissional que cuida, adoece e muitas vezes se pergunta: caminhar ou abandonar a jornada? Essa talvez seja uma das grandes encruzilhadas vividas pelo educador. Continuar ou parar o projeto de vida iniciado? Se na maioria das vezes, trazem consigo somente o grito de dor? Olhando para o lado, não encontra qualquer tipo de consolo e abrigo. Daí a dor, que está forte, se identifica com o vazio da solidão.

A doação que tinha no início de sua caminhada profissional com o passar dos acontecimentos vai se perdendo. O professor percebe-se cansado, estressado e não dá conta do papel que deve ser desempenhado com a competência antes exercida em sala. Não é pela má vontade, mas pela pressão e seu descontentamento por não dar conta do que foi juramentado, sua atuação é tomada pelo desgaste e falta de apoio. A excelência inicial, acaba sendo absorvida pelas tarefas, pela falta de autonomia, de objetivo, sobrecarga, estresse ocorrendo dessa forma um esvaziamento do ser profissional.

Essa situação, assim como o profissional educador tão banalizado na sociedade, devem ser levados a sério. A expectativa frustrada anda de mãos dadas com a angústia, gerando pensamentos negativos quanto a sua capacidade, como se estivesse preso numa bolha e encontra-se sem saída, sustentado em formato de sobrevivente e sem olhar para si, considerando-se sem possibilidades de alterar sua história. Dessa forma, o professor corre sérios riscos de problemas de saúde, a exemplo da Síndrome de Burnout cuja causa é o estresse ocupacional crônico, exaustão emocional, despersonalização e perda de realização profissional. Uma doença silenciosa que muitos educadores não fazem ideia que tem, e o número de pessoas só cresce neste contexto, pois existem poucas literaturas ou trabalhos preventivos.

Em um estudo realizado com um grupo de professoras, notou-se em seus depoimentos a presença da essência em educar ainda presentes em suas falas e ações. Havia um desejo de que as coisas pudessem ser diferentes, porém, não conseguiam visualizar isso por sentirem-se sozinhas nesse pensamento. O grupo demonstrou suas angústias, não somente como profissionais educadoras, mas como educador que também tem filhos e problemas com a educação deles e com o sistema educacional; situações de separação no casamento, entre outros contextos pertencentes a qualquer ser humano. Ao externalizarem seus problemas, o grupo muito trabalhou para a recuperação de significados, autoconhecimento, limites, formas de se comunicar, reflexões sobre seu papel e a possibilidade de encontrarem soluções para suas angústias. Ao exercitarem a experiência de ampliar o olhar diante dos problemas existentes antes de forma solitária, ao socializarem-nas, perceberam a reciprocidade e a possibilidade de provocar e buscar novas soluções e reflexões em conjunto.

O cotidiano é necessário para direcionar e focar nos objetivos a serem cumpridos, mas quando transcende, ocorre a possibilidade de alienar-se e sentir-se totalmente vazio, ou seja, um ser solitário. Esse perfil, afetado pela solidão, pode afetar negativamente sua família, o convívio social, a instituição escolar, sua saúde física e mental.  No entanto, a recuperação existencial desse profissional no exercício do papel de educador dependerá principalmente dele e do apoio recebido.  O complicado é motivar-se para essas mudanças quando se está absorvido pelo sofrimento; é preciso identificar e dar o primeiro passo. O processo é lento, começa por si mesmo e por sua conscientização de que não está sozinho nessa caminhada. A aprendizagem trabalhada em sala de aula também se faz presente na sua forma de agir e reconhecer-se em seus limites, o autoconhecimento é diário. Existem altos e baixos na profissão, num movimento constante, o importante é encontrar possibilidades de enfrentar e viabilizar-se como pessoa e educador.

A qualidade de vida no trabalho é fundamental, é preciso ter coragem para mudar a forma de encarar a realidade e todos em sua volta. Ter uma alimentação saudável, fazer atividade física, ter um hobby, hábitos amplamente divulgados por qualquer canal de comunicação, precisam fazer parte da vida do educador também. Identificar práticas saudáveis que possam ser estimuladas e fazem bem, modificar maneiras de agir e acreditar em seu potencial no sentido de renovar-se constantemente. É necessário e possível vencer o desafio de relacionar-se melhor consigo mesmo, aumentando dessa forma a perspectiva de vida e o reconhecimento enquanto profissional, elevando suas habilidades de mediação das relações que possam influenciar e afetar seu trabalho e sua vida pessoal.

Kátia Janete Egerland Souto – Psicóloga – CRP 12/12744, Pós graduação, em andamento: Psicologia Organizacional e do Trabalho; Pós-Graduação, em andamento: Especialização em Psicologia Existencial Sartreana. Realiza atendimentos clínicos e casos de estresse relacionado ao trabalho. Contatos: psico.katiasouto@gmail.com

 Giselle da Silva Fiamoncini – Pedagoga, Orientadora Educacional, Coordenadora Pedagógica, Especialista em Psicopedagogia, Pós-Graduada em Educação Infantil; Psicóloga – CRP 12/12743. Contatos: gisellef.psic@gmail.com

Artigo publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccional da Grande Florianópolis nº 6, junho de 2015, p. 30.

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