Tecendo nossos lutos 

“Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte” Sigmund Freud

Falar de morte não é algo que agrada a nenhum de nós humanos, porém, sempre comento que falar do morrer é ressignificar a vida e como lidamos com ela diariamente. Quase sempre, esse assunto é proibido nas rodas de conversas, nas escolas… o assunto nos causa medo, dor e incertezas. Recentemente li a autobiografia de Rita Lee, uma cantora e compositora que marcou minha rebeldia de adolescente e juventude. Ao ler esse livro, esse tema voltou a me inquietar, pois ela relata de forma visceral sua despedida e encontro com um diagnóstico que a definiu e a definhou nos últimos três anos. Ao mesmo tempo em que fui tocada por lágrimas, fui tocada pela despedida em vida, pelos sentimentos latentes de um SER que, apesar de toda fama e reconhecimento, sentiu sua finitude, sua impotência frente à vida e reconheceu que ali não dependia mais dela. Mesmo assim, ela relata sua gratidão pela vida, pelo marido, filhos e seus fãs.

Eu estava ali pensando: nós não fomos educados para falar de perdas e seus lutos necessários, basta olharmos (sem ser juiz) e reconhecermos que viemos de uma escola que nos preparou para ganhar, para chegar em primeiro lugar ou apenas para não sobrar e talvez “não ser ninguém” na vida, essa vida que ainda muitas famílias e escolas acham que é a principal. Neste ano de 2023 fomos tomados por sentimentos e emoções muitas vezes desconhecidos por nós, quero dizer, quem se permitiu rever a vida-morte durante uma das maiores pandemias que já vivemos e sobrevivemos. A vida é nossa própria saúde mental: a forma de ser e estar no mundo. Quem aproveita a dor para falar de amor, consegue lidar melhor com a engrenagem da saúde física, mental e emocional.

Da noite para o dia, compartilhamos uma dor sentida globalmente, deixamos nossas rotinas, famílias, escolas, empresas e fomos obrigados a viver em isolamento por quase dois anos, fomos tomados por incertezas sobre o que aconteceria a seguir, tivemos que nos reinventar. Hoje penso que o que aprendemos já se perdeu novamente na correria de uma vida que nega o morrer, que nega os intervalos e, principalmente, na velocidade de um mundo que se perde no que realmente deveria fazer sentido.

As dores da vida são nossas emoções e sentimentos e elas precisam e devem ser nomeadas, nossas crianças e nossos jovens devem ser ensinados sobre suas emoções, sejam elas negativas ou positivas. A morte é a única certeza que temos na vida e a única coisa que negamos o tempo todo. Acredito que é disso que necessitamos: que alguém nos escute!Morre-se todos os dias, a morte é um encontro sem hora marcada, não será possível negar esse tema nas famílias e nas escolas. O momento é falar sobre vida, o antídoto da morte, mas lembrando das nossas mortes simbólicas, como: a mudança de escola, o avançar da idade, nossas rugas, a perda da infância, da adolescência. Com tantas despedidas precoces, reconhecemos em cada um de nós o desejo de seguir investindo emocionalmente na VIDA e, juntos, aprendermos a nomear e partilhar nossos sentimentos tão aflorados no dia a dia e tão escondidos no partilhar da vida.

Tecer nossos lutos é vivenciar empaticamente nossas privações, tão presentes em nossas vivências cotidianas, no crescer, no largar a infância, nas rupturas matrimoniais, na ausência física dos amigos, na mudança de casa, de escola e até mesmo na tão vivida privação de ir e vir nas ruas e nas rotinas diárias. Portanto, o assunto deve ser pauta de encontros, seminários e planejamentos. 

Quem sabe, dessa forma conseguiremos costurar nossas experiências vividas e bordar uma OUTRA HISTÓRIA de vida, alertando nossas crianças de que a dor é parte da vida. Afinal, não é isso que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nos mostra? A importância de educarmos as crianças para as perdas como ciclo da vida. Se pararmos para fuxicar sobre as habilidades socioemocionais, perceberemos elas nas entrelinhas.

Trabalhei por anos, diretamente em sala de aula e em coordenação, onde pude vivenciar perdas de crianças, pais e professores, jamais esperadas pela lei natural. Hoje trabalho com esse tema na clínica e nas palestras com educadores (aqueles que educam suas dores: educa-dor). Desde aquela época, comecei a costurar minha vida pessoal e profissional. O tema passou a me tocar de forma diferente, sentia necessidade de compartilhar com meus pares para depois construir um projeto que se chamava: TECENDO MEUS PONTOS DE DOR, no qual trazíamos músicas, poemas, textos e vivências de perdas, lutos e superação. Fomos tecendo ponto a ponto do CICLO DA VIDA.

Os pontos-chave para o início das rodas de escuta-conversa eram: vida; morte; pontos; nós… A ideia é que cada um de nós compõe o grande TEAR, um espaço onde os sujeitos da escola possam expressar seus pensamentos, desejos, sentimentos, sem serem julgados. Falar, estudar, compartilhar, assistir, trocar tudo que pode ser costurado pelas nossas ações. Cada um ali representa uma história de vida (um retalho) a ser escutada por nós, sem pressa, sem estar conectados em outros aparelhos que não seja o nosso coração, afinal, escutar é uma arte das costureiras, observem! É a arte de esvaziar-se e inquietar-se para ver a “costura” pronta.  É nesse espaço de ir e vir e com a certeza do retorno, que convido cada um de vocês a TECER os vínculos afetivos: isso é processo, isso é vida. O luto tece sonhos perdidos, histórias interrompidas e possibilidades de uma costura que borde as bordas de uma ausência.

As famílias e escolas podem construir um espaço que legitime o luto como uma prática emocional que permite reconstruir e ressignificar as dores vividas em qualquer fase da vida. Afinal, a vida é apenas uma sucessão de pontos e cortes, de começos e fins. Experimentem TECER O LUTO DE CADA DIA!

Jane Patricia Haddad – Mestre em Educação, conferencista e psicanalista.  www.janehadda.com.br

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