Refletir sobre educação sexual intencional emancipatória em instituições educativas também é uma questão de desvelar valores?

Inicio esta conversa com uma pergunta aparentemente simples, aparentemente ingênua, mas muito necessária para levantar algumas reflexões sobre as possibilidades de educação sexual intencional emancipatória nas instituições educativas: educação em geral, e, portanto também a educação sexual nas escolas, só existe, só acontece quando uma pessoa, ou um grupo de pessoas “decide que ela aconteça”?

Nestes quase trinta anos de caminhada do nosso grupo de pesquisa sobre formação de educadores e educação sexual algumas certezas provisórias nos ajudaram a definir um eixo fundamental que subsidia todo nosso trabalho: a busca constante da sensibilização das pessoas, em todos os espaços educativos formais e não formais, sobre ser a dimensão da sexualidade inseparável do existir humano e sobre o fato de que, nesse processo do existir humano, as relações sociais estabelecidas educam a todas as pessoas e a cada uma, mediatizadas pelo mundo. Como disse Paulo Freire, ninguém educa ninguém, as pessoas se educam nas relações uma com as outras, mediatizadas pelo mundo.

Os seres humanos, nessas relações com os demais seres e com o mundo, produzem então conhecimento, expressos em diversas culturas, dependendo dos embates da materialidade que vivenciam e, nessas relações, sempre se educam: o humano sempre educa e se educa na relação com o outro, em determinado espaço geográfico e temporal. Então educação é um fenômeno permanente, humano, social e sempre sexuado, já que a dimensão da sexualidade é inseparável do existir humano.

 Compreendemos, portanto que cada um, cada uma, e todos e todas, portanto, somos sempre educadores/educadoras sexuais uns dos outros/outras, saibamos disto ou não. Compreendemos também que a abordagem dessa educação, sempre sexuada existente entre as pessoas, terá a “cor da luz da lanterna paradigmática” que a ilumina, tenhamos ou não consciência disto. Nossa “cor de lanterna paradigmática” leva-nos a propor, nessa nossa caminhada de quase três décadas, que se busque desvelar com educadores e educadoras uma perspectiva crítica de realidade, onde a sexualidade passe a ser compreendida como dimensão inseparável da história do ser humano em nosso planeta. E que são os seres humanos, em suas relações sociais, os construtores dos significados para essa dimensão, assim como para todo esse processo chamado vida.

Por essa compreensão de sexualidade e de educação sexual é que cunhamos o termo educação sexual intencional emancipatória, refletindo nosso objetivo de sensibilizar intencionalmente os e as educadores/as sobre as possibilidades hoje existentes de construirmos coletivamente uma proposta sobre esse tema, numa perspectiva humanista.

Não ter consciência dessas questões acima, da educação sempre acontecer e ser sempre sexuada, tem provocado vieses na formação de educadores e educadoras bem intencionados em várias instituições educativas que vão, com todo amor e carinho, tentar realizar, a partir de uma decisão sua, ou por delegação de setores legais que lhe ditam normas e práticas, “educação sexual”, sem saber que já a realizam em todos os dias de suas vidas. Esse equívoco de entendimento leva a outros vieses que atrapalham as ditas boas intenções, pois muitas vezes, quando se escrevem documentos norteadores, ou quando se discute essa proposta de “a partir de agora fazer educação sexual nas escolas”, são passadas mensagens nos escritos e nos textos em cursos de formação de que a educação sexual não existiu nem existe ainda nas escolas até aquele momento.

Faço aqui uma analogia com a questão do chamado projeto político pedagógico na escola – o chamado PPP: no Brasil, por exemplo, a partir de um certo período, começou um movimento de orientação legal para que as escolas fizessem seus projetos políticos pedagógicos. Ora, ele sempre existiu nas escolas, mesmo que quem lá estava, vivendo o cotidiano, não tivesse consciência do mesmo. Isto porque não tê-lo por escrito não significava que o mesmo não existisse: a escola abria as portas todos os dias, durante um ano letivo, recebia seus alunos, professores e funcionários, que trabalhavam conteúdos e executavam as outras tarefas que lhe eram inerentes e, ao final de alguns anos, certificava a comunidade escolar que os discentes estavam prontos naquilo que a escola se propunha a formá-los.  Pode-se dizer que o PPP sempre existia, mesmo nas escolas que não o produziam conscientemente, pois, nesse caso, talvez o PPP fosse “o de não ter projeto político pedagógico…”.

 Senão vejamos: sempre as pessoas na escola, talvez com receitas prontas, têm um projeto: querem ir de algum lugar para algum outro lugar, tem uma meta. Este caminhar é tremendamente político, porque envolve os humanos em suas relações e tem resultados sobre suas vidas, e é pedagógico, porque todos se educam, mesmo que, tristemente, seja pra produzir uma educação de péssima qualidade. Então, temos aí um PPP sempre acontecendo. É claro que o estímulo para que, coletivamente a comunidade escolar repense sua práxis, a luz dos elementos de um projeto político pedagógico consciente e compromissado com o que a maioria daquela comunidade quer para suas crianças e adolescentes, registrando suas decisões em um planejamento participativamente decidido, é algo a ser valorizado. Mas isto não significava, nem significa, que não existia-existe um projeto político pedagógico acontecendo na instituição educativa e que o mesmo passaria-passa a existir apenas quando um grupo determina sua existência e sua execução.

E assim acontece também com a educação sexual. Se não temos consciência da abordagem concreta sobre essa temática que é plena no dia a dia da escola, se ignoramos o poderoso currículo oculto que vibra no cotidiano, com tudo o que ali acontece, ali incluída a questão decorrente da dimensão da sexualidade em suas interfaces com todos os componentes curriculares, incorremos no equívoco, portanto, de achar que não existe educação sexual acontecendo entre os muros da escola, a não ser que alguém “decrete” seu início e seu modelo. E qualquer processo de educação sexual, mesmo oculto e-ou o não sabido, é pleno de valores.Quais são então esses valores?

E é esse equívoco que abre espaços para que muitas cores paradigmáticas, nem todas querendo uma educação de qualidade para todos, com valores humanistas, com os direitos humanos garantidos, ocupe o espaço para propor que “se faça educação sexual” segundo receitas vindas de cima para baixo, decidida por alguns poucos, em grande parte com fundamentos em vertentes repressoras que, além de trabalharem sobre a ideia que não existe educação sexual acontecendo no espaço escolar e que essa começará a partir da proposta recém-feita, reforçam estigmas, reproduzem preconceitos. Enfim, contribuem com um processo desumanizador e alienador do ser humano, com valores impostos, dos quais muitos de nós não temos nem mesmo a consciência de que ali estão imbricados.

Pela nossa vivência nesses anos todos podemos afirmar, com tristeza até, mas não sem esperanças, que esses vieses acima citados também acontecem na maioria dos currículos regulares de formação de professores e mesmo nas propostas para sua formação continuada. Nos currículos formais para sua formação o que acontece é, na maioria das vezes, que a educação sexual continua sendo vivenciada apenas no currículo oculto, reproduzindo, acriticamente no cotidiano, nas práticas pedagógicas dele decorrentes, vertentes pedagógicas repressoras sobre sexualidade.  O mesmo acontece em muitos dos cursos que são oferecidos aos educadores e educadoras como propostas de formação continuada. Também neles, na maioria das vezes, o tema não aparece explicitamente, pulsando, portanto num currículo oculto, quase sempre com vieses repressores, e, se aparece, traz propostas imediatistas também redutoras de humanidade, com propostas de soluções para o “problema” da educação sexual, determinando aos participantes do curso que, com aquelas proposta, “comece a fazer educação sexual na sua escola”. Isto significa que se espera que o mesmo volte para sua escola e comece imediatamente, em tempo recorde, a fazer o que não fizeram com ele. Será que se trata de, como diz o ditado: faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço?

Então, há que repetir a pergunta inicial: a educação sexual só existe quando alguém determina o seu início? Por que não desvelar que a sociedade humana é sempre agente educadora e que todos e cada um sempre se educam, também sexualmente, no processo do existir humano? Há que se repetir essa frase: somos todos e todas, queiramos ou não, saibamos ou não, educadores e educadoras sexuais um dos outros no permanente e rico processo de educação existente entre os seres humanos.

Há que se buscar um permanente processo intencional de educação sexual, numa perspectiva emancipatória, buscando sensibilizar educadores e educadoras sobre essa maravilhosa dimensão humana, a sexualidade, e sobre as possibilidades de resgatar um existir pleno para todas as pessoas. Esses certamente são valores pelos quais vale a pena trabalhar no cotidiano escolar, unindo escola e família.

Quando conseguimos juntos todos, educadores e educadoras na escola e na família, fazer essa caminhada dialógica, é libertadora a sensação porque a busca da construção dessa caminhada para trabalhar intencionalmente uma educação sexual emancipatória com certeza é parte fundamental da busca da construção de um mundo justo e fraterno.

Mas, todas essas reflexões só farão sentido se forem expressão de uma real vontade política da comunidade, e de cada educador e cada educadora, seja na família e na escola, de buscar mudanças e de reconstruir e vivenciar novos paradigmas educacionais que respeitem a dignidade humana, sempre sexuada.

Só assim a educação que queremos e pretendemos terá sentido. Sabem por quê? Paulo Freire (2000), um brasileiro de quem muito nos orgulhamos, assim lindamente escreveu:

A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são projetos quando podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderem assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação. (p.40)

Adaptando um pouco mais de Paulo Freire, registramos aqui o fato de que, na verdade, se não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes. (2000, p.33). Esse é o sonho, esse é o desafio.

Referências

FREIRE, Paulo R. (2000) Pedagogia da indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP

Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccionais de Biguaçu e São José, nº 5, junho de 2014, p. 18.

Profª Drª Sonia Maria Martins de Melo – Graduação em Pedagogia, Mestrado em Educação, Doutorado em Educação. Professora Universidade do Estado de Santa Catarina.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*