Nos últimos 3 anos ganhou força e notoriedade no país o Projeto Escola sem Partido, que chegou a ser implantado como lei em alguns municípios.
De acordo com o projeto, as escolas públicas e suas professoras teriam todos um posicionamento político de esquerda e seriam doutrinadoras de suas(seus) alunas(os). Ainda segundo o projeto, discutir problemas sociais como as questões de gênero e raciais, refletir sobre a violência, ensinar para o respeito à diversidade, seria doutrinar, incutir nas(os) estudantes um ideário socialista, a partir do projeto de um único partido político, o Partido dos Trabalhadores.
Os ideólogos do Projeto Escola sem Partido defendem uma educação e uma escola neutra, em que as professoras seriam apenas transmissoras impessoais de um conhecimento científico também “neutro”. Reflexões sobre os problemas sociais, sobre gênero, sobre nossas muitas formas de violência e preconceitos estariam expurgadas da escola, e docentes que ousassem proporcioná-las às(aos) suas(seus) alunas(os) poderiam ser alvos de processos extrajudiciais impetrados pelas famílias.
Propõem também que a família, de certa forma, dite o que pode ou não ser ensinado a suas(seus) filhas(os).
Embora esse projeto tenha sido considerado inconstitucional pelo Tribunal Superior de Justiça, na prática ele penetrou nas escolas por meio da ação não apenas de famílias, mas também de vereadoras(es), deputadas(os), que se sentiram autorizadas(os), a partir de suas crenças pessoais, a intervir nos projetos e na dinâmica escolar.
Adentrou também nas Instituições de Ensino Superior por meio de questionamentos a projetos e ações de várias universidades, e agora por meio de decisão do governo federal de intervir na escolha de reitoras(es) e pró-reitoras(es) das Universidades e Institutos Federais, com a justificativa de que as universidades são doutrinadoras, sobretudo os cursos de ciências humanas, considerados desnecessários para o “progresso” do país.
Mas o que dizer desse projeto, de seus princípios e suas consequências? Comecemos pelo nome – Escola sem Partido. De onde surge esse projeto? Quem são seus articuladores? O projeto surge de pessoas – não especialistas no campo da Educação, portanto sem competência técnica para elaborar projetos educativos – ligadas a partidos políticos conservadores ou de direita, ou seja, o Projeto Escola sem Partido tem partido. Aí começa a falácia.
Vamos então analisar as crenças que fundamentam a proposta:
A primeira delas é a ideia de que o conjunto dos professores e das professoras tem posições políticas de esquerda. Imaginar uma bobagem dessa magnitude só pode sair da cabeça de quem não conhece a escola pública. A escola pública e suas docentes são marcados pela diversidade – de experiências pessoais, de histórias e origens, de posicionamentos diante da vida e da política (não exclusivamente partidária), de crenças, de formação acadêmica, entre outros fatores –, e isso compõe a riqueza da escola. Ignorar a diversidade de nossas professoras é negar sua humanidade. O acesso ao pensamento divergente, a distintos pontos de vista, ao dissenso, é elemento indispensável ao desenvolvimento do pensamento reflexivo, crítico, criativo.
A segunda questão que se coloca refere-se a defender a neutralidade – da escola, da professora, do conhecimento. Desde a década de 60, pesquisadoras(es) e filósofas(os) de todo o mundo já apontam a impossibilidade da neutralidade.
A ciência não é neutra, tampouco os conhecimentos que gera. Em qualquer campo do saber, o que orienta as decisões e escolhas dos cientistas são questões do cotidiano, da sociedade. Anos atrás, quando começaram a surgir casos recorrentes de nascimentos, no nordeste do país, de crianças com deformidades cerebrais, e esses casos foram associados ao Zica vírus, muitas(os) cientistas das áreas biológica e da saúde passaram e a direcionar seus estudos para o Zica vírus e suas consequências. Não foi uma escolha neutra, foi uma resposta a um problema social daquele momento.
Assim ocorre em todos os campos científicos – as escolhas são motivadas pelas demandas externas, assim como pelos interesses e experiências pessoais; portanto, não há ciência neutra.
Do mesmo modo, não é possível uma transmissão de conhecimentos, uma educação que seja neutra. A elaboração do Projeto Pedagógico de uma escola implica escolhas, ainda que baseadas em uma base curricular comum. Planejar a organização disciplinar, a ordem de encadeamento dos conhecimentos, as metodologias de ensino-aprendizagem e de avaliação, pensar sobre as questões locais que afetam a escola, sobre a relação com famílias e comunidade escolar, implica reflexão, tomada de decisões – não há neutralidade possível.
Do mesmo modo, a professora, ao tomar as decisões pedagógicas – que objetivos estabelecer, que conteúdos trabalhar para atingi-los, que estratégias utilizar, como avaliar –, coloca em ação seus conhecimentos adquiridos, sua experiência como docente e suas memórias como estudante, suas ansiedades e preocupações, além de levar para a sala de aula toda a carga de responsabilidade mal remunerada que carrega. Suas crenças, representações sociais de mundo, de país, de sujeito afetam suas decisões e ações. Pensar uma professora que só transmite a partir de um vácuo neutro é, novamente, ignorar o que é educação e o que é escola.
É também ignorar a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que determina que o papel da Educação e da Escola é formar cidadãos conscientes, capazes de refletir criticamente sobre a realidade a partir dos conhecimentos acumulados pela humanidade, de serem criativos e ativos na sociedade. Assim, ou temos LDB, ou temos Escola sem Partido – há evidente impossibilidade de coexistência entre os dois.
Mas os problemas não param por aí. O que significa propor que as famílias ditem o que pode ser ensinado na escola? De que famílias, afinal, o projeto fala? Há aqui novamente um total descaso ou “des-saber” sobre a diversidade de nosso povo. As famílias não são todas iguais – são humanamente diferentes. Em sua composição, em seu funcionamento, em suas crenças e experiências, em sua inserção local e cultural. Se cada família, a partir de suas crenças e interesses, tiver o poder de determinar o que a escola deve ensinar, na prática a escola nada poderá ensinar, já que o conflito de expectativas mostra-se evidente.
Imaginemos uma situação concreta: uma criança de 6 anos pergunta à professora: “Professora, Deus existe?”
Hipótese 1: a professora responde cautelosamente que, segundo suas crenças, Deus existe. É no que ela acredita. Uma criança, cujos familiares são ateus ou budistas, conta em casa que a professora disse que Deus existe.
Um familiar vai à escola e registra queixa contra a professora, porque está impondo suas crenças religiosas ao seu filho.
Hipótese 2: a professora, cautelosamente, diz que na escola devemos tratar de conhecimentos científicos e, portanto, não pode afirmar a existência de Deus. Uma criança diz em casa que a professora disse que Deus não existe.
Um familiar registra queixa contra a professora, porque está doutrinando seu filho a não acreditar em Deus.
Hipótese 3: a professora diz que esse tema foge aos objetivos da escola e que a criança deve fazer essa pergunta a seus familiares.
Um familiar vai à escola e se queixa de que a professora se recusou a responder a uma dúvida de seu filho.
Resumindo: qualquer resposta a qualquer dúvida pode suscitar descontentamento, e a educação torna-se uma impossibilidade.
Sobre a cabeça das professoras, que já carregam a justa responsabilidade de ensinar, de cuidar, de acolher, de transformar, joga-se a espada do controle, da perseguição, do total descaso e desrespeito.
Com isso não quero dizer que a escola deve ignorar as famílias e a comunidade; ao contrário, defendo o diálogo e cooperação constante entre escola e família. Mas a relação por meio de processo extrajudicial e acusações está longe de ser diálogo e de constituir base para uma boa educação de nossas crianças e jovens. Com frequência ouvimos dizer que as(os) alunas(os) não respeitam suas professoras. Mas como construir esse respeito em um país em que os governantes não os respeitam e se as famílias são transformadas em fiscais de ideologia?
No âmbito das universidades, o atual governo federal pretende escolher gestores alinhados ao pensamento conservador de ultradireita que o caracteriza, direcionando assim rumos acadêmicos e a produção científica, além de produzir filtros para o financiamento para a pesquisa no país. O lamentável projeto Future-se, apresentado pelo MEC para as Universidades Federais, escancara o controle sobre as universidades e a pesquisa, na medida em que as submete ao mercado e a financiamento privado. O interesse da nação é substituído pelo interesse do mercado. Como sobreviverá uma ciência sem autonomia, um cientista sem voz, uma universidade sob tutela?
Há ainda um ponto extremamente preocupante: a crença, no projeto, de que falar de problemas sociais ARTIGO como violência, racismo, preconceitos, falar sobre gênero, diferenças e respeito, é doutrinação de esquerda, viés partidário.
Os preconceitos, o racismo, as violências de gênero e toda sorte de violências estão descritos e são combatidos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, escrita em 1948 e assinada por 48 países, entre eles Estados Unidos e União Soviética e também o Brasil. A Declaração é uma manifestação mundial de repúdio aos horrores produzidos nas duas grandes guerras e um compromisso (ao menos declarado) de jamais permitir que se repitam. Nela, afirma-se o direito à diferença, à não discriminação, à integridade humana, bem como ao acesso amplo à educação e ao conhecimento. Esses princípios orientam a Constituição Federal de 1988 e a nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Como, então, propor que a escola ignore problemas que afetam os direitos humanos, em sua dignidade e diferença? Como construir relações abstratas de respeito?
O que se pode esperar de um país em que Direitos Humanos passam a ser considerados projeto de um único partido, e não um princípio geral de existência e convivência? Jogados nesse buraco de incivilidade, nesse projeto de subjetividade abjeta, destrói-se nossa humanidade e nosso conceito de nação. Diante de um outro que nada significa, com que não me identifico como partes, os dois, do humano, nada resta que nos agregue e preserve: estamos à venda, para quem pagar mais.
Em síntese, podemos afirmar que, sob o manto roto da neutralidade e do combate às ideologias, o Projeto Escola sem Partido é pura ideologia – pensa uma escola e um conhecimento neutros – apartados da vida, uma professora sem voz, uma (um) aluna(o) sem consciência.
As subjetividades que evoca são aquelas fundadas no ideário neoliberal em sua versão selvagem, individualistas e competitivas ao extremo, sem consciência coletiva, sem apego a valores humanos universais, sem empatia, sem vontade, sem afetos.
A Psicologia, como ciência do e para o ser humano, para quem as vidas humanas, em sua diversidade, importam, deve por ofício comprometer-se com o enfrentamento qualificado desse e de outros projetos que venham a atacar virulentamente o direito constitucional à educação, de acesso amplo ao conhecimento, ao pensamento livre, autônomo, ao respeito à dignidade humana, ao enfrentamento das violências.
Que em todos os lugares que ocupamos, na profissão, na formação, sejamos voz da resistência e ação que construa afetos, empatia, saberes, consciência, laços.
Ângela Sonego – Mestre e doutora em Psicologia pela PUC Campinas, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, presidente da ABEP Associação Brasileira de Ensino de Psicologia e da Associação Latinoamericana de Formação e Ensino em Psicologia.
Publicado na Revista Diálogos Ed. 11 agosto 2019, p. 30 – 35. https://site.cfp.org.br/publicacoes/revistas-dialogos/
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