Apesar dos constrangimentos que a vida actual nos possa trazer, de uma coisa não nos podemos queixar: de uma forma geral, vivemos hoje com maior abertura e muito menos tabus do que os nossos pais e os avós.
Mesmo que tenhamos vivido um pouco à margem do liberalismo dos anos sessenta que floresceu pela Europa fora, a modernidade acabou por chegar e hoje, pelo menos no que toca à nossa vida afectiva e familiar, muitos dos nossos antigos fantasmas, como segredos, medos, austeridade e puritanismo passaram à história, especialmente nas últimas décadas.
Feito o balanço, as crianças ficaram a ganhar. O desenvolvimento da psicologia infantil, e o nosso empenho como pais cada vez mais atentos e alertados para as suas necessidades profundas, fizeram-nos ganhar consciência das condições mais adequadas para um crescimento saudável.
Isto, apesar da culpa pelo pouco tempo que lhes dedicamos, apesar da instabilidade generalizada, do cansaço, da dispersão e da ansiedade com que vivemos. Mas a consciência das coisas aumentou certamente, e a liberdade, também. E com ela, vieram os excessos, inevitáveis.
Era previsível, aliás, que a quantidade significativa de informação de que hoje dispomos, e as fases de transformação acelerada que somos obrigados a viver trouxessem um certo grau de confusão e permissividade na forma como tendemos a encarar certas questões. Hoje, começa-se, de novo, a falar de interditos e de limites.
Não significa isto que estejamos a recuar em termos de liberdade, mas antes a repensar, depois das várias experiências feitas, certos conceitos e atitudes. E a dar-lhes uma renovada importância.
Assim é o caso dos interditos sexuais e da necessidade de lidar com eles de uma forma adequada, clara, sem confusões, como o reconhecimento da necessidade de pudor, privacidade e respeito que cada criança merece, desde a mais tenra idade, e dos cuidados que é preciso ter para evitar que o seu sensível processo de desenvolvimento se perturbe, ao longo das etapas que terá de atravessar até à idade adulta. Que será tanto melhor sucedida, em termos de satisfação e expansão pessoais, quanto melhor forem vividas cada uma das mesmas.
Proximidade sem limites
O bebé busca, antes de tudo, o prazer. De ser tocado, alimentado, acariciado, olhado. Este é o primeiro passo de um processo que atende às suas mais profundas necessidades, desde o seu nascimento. Aliás, o amor dos pais pelo filho pede que se faça, ao longo do seu crescimento, dois grandes movimentos: proteger e autonomizar.
No que toca à progressiva vivência da sexualidade infantil, em particular, esses movimentos assumem uma importância significativa. Senão vejamos. Nos primeiros anos, especialmente nos primeiros meses, a protecção e a intimidade entre mãe e filho não têm restrições. Em causa está, nada mais, nada menos, do que a sobrevivência física e psíquica do bebé. Nesta fase, não há limites para os cuidados de todo o tipo, visando o prazer do bebé.
Implicam a alimentação a tempo e horas, as demonstrações íntimas de carinho, como os beijos, o colo, as massagens, o contacto de pele a pele, toda uma série de «pedras» basilares na construção psíquica e sensorial que se inicia, e a que idealmente se seguirão outras fases em que a mãe se afastará progressivamente para permitir a autonomia da criança, possibilitando que cresça de uma forma completa e equilibrada até à idade adulta.
Mas voltemos um pouco atrás. Nos primeiros três anos, como confirma Alexandra Medeiros, mestre em Psicopatologia e Psicologia Clínica, toda «a proximidade e contacto corporal» são altamente «benéficos». O bebé, em particular, está totalmente dependente da mãe, tem um forte instinto de sobrevivência e deseja a gratificação imediata de «todos os sentidos, que nesta fase se encontram mais despertos». Escusado será dizer que a satisfação destes desejos é «fundamental para a sua aprendizagem e desenvolvimento saudável».
Entretanto, o bebé «vivencia este auto-erotismo com o seu próprio corpo», mas não podemos falar ainda de sexualidade propriamente dita. Nesta fase, em que o pudor ainda não está desperto, a mãe pode tomar banho com o bebé e dormir com ele. Toda a proximidade física é benéfica, como atrás foi dito, no sentido em que promove uma boa estrutura psíquica e sensorial.
Segredo que faz crescer
Embora já presente como um «afecto» e «figura de vinculação» desde o nascimento do bebé, o pai só entra realmente em cena, como potencial rival, sensivelmente quando a criança começa a andar, por volta do ano e meio.
Nesta fase de primeiras explorações, em que ela se afasta lentamente da mãe, descobrindo e experimentando a sua primeira autonomia, o pai começa a ser visto como um rival, um intruso na relação com a mãe, até aí «parceira privilegiada».
A chegada desse rival que vai dissolver a relação simbiótica entre mãe e filho, introduz no imaginário da criança a diferenciação de sexos e de papéis, o que representa mais um momento crucial do desenvolvimento infantil, vivido sobretudo a partir dos três anos.
O pai, «o terceiro elemento que lhe vem roubar a atenção exclusiva da mãe é, segundo as teorias mais clássicas da sexualidade infantil, o momento em que o menino vai rivalizar com o pai, e a menina o vai ‘seduzir’, por assim dizer», diz Alexandra Medeiros.
Se o processo decorre adequadamente, segue-se uma nova etapa em que a criança se sente excluída da relação entre os pais, do mundo secreto da sua sexualidade. «Nesta altura, ela pensa: eles têm alguma coisa a que eu não pertenço, a que eu não posso assistir».
No entanto, cabe aos pais interditar-lhe o acesso a esse mundo secreto, permitindo-lhe que o fantasie, a bem da sua saúde mental, da sua criatividade e da sua inteligência, sublinha Alexandra Medeiros. Trata-se de um interdito altamente construtivo, o mais importante «lado impulsionador do desenvolvimento» do ser humano em construção.
Esta experiência edipiana, como é conhecida, «mexe com a identidade e a identificação sexual», na medida em que «a curiosidade vai permitir que o rapaz, por exemplo, se identifique com o pai, que imagina como forte, muitas vezes fantasiado como um polícia ou bombeiro, uma figura a que ele atribui poder».
Neste movimento, a criança «vai identificar-se com esta figura que ele acha por lado ameaçadora porque lhe roubou a atenção da mãe, e portanto é um rival, mas por outro é um herói, a quem ele quer ser igual, quando for grande». Mais um desejo construtivo, que lhe permite não só crescer, mas também que todo o desenvolvimento se processe de uma forma equilibrada.
A idade do pudor
À medida que toda esta dinâmica entra em movimento, sobretudo a partir dos três e até aos seis anos, a criança entra num processo de individuação e autonomia, descobre o seu corpo e deseja controlá-lo em privacidade. Surge o desejo cada vez maior de autonomia, em que faz questão de ir sozinha à casa de banho, de se vestir e despir sem a ajuda dos mais velhos.
«Esta experiência pertence-lhe, assim como a descoberta do seu corpo, gosta de o assumir com algum controle, de o explorar sozinha». Por isso, trata-se de respeitar, absolutamente o seu desejo de intimidade e de pudor.
«Muitas vezes, nas famílias, este facto não é valorizado», diz Alexandra Medeiros, nomeadamente no que se refere à nudez dos pais em frente dos filhos, ao facto de tomarem banhos juntos ou de dormirem na mesma cama, que nesta fase de desenvolvimento são absolutamente desaconselháveis.
É bom não esquecer que não se trata de uma «questão moral», como a psicóloga faz questão em acentuar, mas da necessidade absoluta que uma criança tem da «sua privacidade, da sua intimidade e do seu espaço».
Esta necessidade é tanto mais premente quanto é certo que nesta altura particularmente sensível do seu desenvolvimento, a «erotização do seu corpo começa a despertar-lhe curiosidade sexual pelos dois sexos, do pai e da mãe, começa a fazer perguntas e a questionar-se sobre a sexualidade dos pais».
Se demasiado explícita, a nudez dos pais, diz a psicóloga, torna-se «excitante demais para a criança, de uma forma que ela não consegue organizar». Isto, sem falarmos «nas intenções que podem ser lidas neste acto de nudez em si própria, ou em qualquer outro acto». Mas mesmo que não haja qualquer intenção específica da parto do adulto, «ao provocar numa criança uma excitação muito maior do que ela pode aguentar, estamos a dar-lhe mais frustração do que satisfação, o que é perturbador».
É claro que cada um de nós tem uma forma própria de reagir, e o que perturba uns, pode não ser tão inquietante para outros. No entanto, em termos de desenvolvimento é esta a dinâmica normal do desenvolvimento infantil, em que «demasiado acesso à nudez dos pais, à sua cama, a conteúdos sexuais desagregados, ou, o que é pior, à própria sexualidade dos pais, é muito perturbador».
E voltamos ao princípio dos interditos, que permitem fantasiar, que é a criatividade e a inteligência. Privar uma criança desses interditos, é comprometer gravemente o seu desenvolvimento e equilíbrio mental, embora cada situação varie conforme o grau de exposição, a forma como isso foi vivido.
No entanto, como em tudo, há excepções, ou seja, «há alturas em que levar as crianças para a cama pode ser tranquilizador, no caso de viverem medos ou inseguranças, mas fazê-lo por hábito e sistema é um excesso a evitar».
Inquietação adolescente Depois de um período relativamente calmo, entre os seis e os doze anos, a que se chama fase de latência, a criança como que «adormece» para a sexualidade, embora não o faça totalmente, porque mantém sempre alguma curiosidade sobre os mistérios da sexualidade adulta.
Prepara-se para entrar numa outra fase muito mais turbulenta. A partir dos doze, começa de novo, em crescendum, um despertar para a sexualidade, mas desta vez, este interesse é de uma natureza diferente do manifestado na fase edipiana. É nesta altura que os rapazes têm as suas primeiras namoradas.
Pouco depois, em plena adolescência, com todas as turbulências físicas e psíquicas que ela implica, regista-se uma nova forma de viver a sexualidade, em que a transformação do corpo, os movimentos emergentes e irracionais da líbido e o verdadeiro vulcão de emoções à solta são difíceis de gerir. Tudo isto exige dos pais simultaneamente delicadeza e distância, física e emocional.
Se todo o processo do desenvolvimento sexual correu bem, o jovem chega à puberdade com reacções específicas, sobretudo uma necessidade enorme de privacidade e de viver a sua sexualidade em privado, ou «mais agida» com os seus pares. Nesta idade, um excesso de proximidade física com os pais é muito mal recebido.
Certas reacções mais intempestivas são absolutamente normais, como, por exemplo, em relação à nudez dos adultos, que ele não suporta, e que é vivida como uma verdadeira agressão. Assim, para que o jovem adolescente se desenvolva numa certa tranquilidade psíquica, há a necessidade de que a diferença de gerações seja respeitada.
Não levar em conta a sua necessidade de pudor, repetimos, impondo-lhe demasiada proximidade física, mesmo se não é intencional, é confrontá-los com uma sexualidade que eles não querem, e ao mesmo tempo negar a sua individualidade, a sua diferença geracional.
Na adolescência, a sexualidade deve ser procurada fora, e não dentro de casa. Neste sentido, Marcel Rufo, pedopsiquiatra com largos anos de experiência, condena vivamente os pais que permitem que o seu filho ou a sua filha adolescente durmam com os namorados em casa, em plena família.
Trata-se de um excesso de intimidade que traz mal-estar a todos, e que além disso impede o adolescente de se organizar por sua conta e risco, ou seja, de começar a resolver os seus problemas práticos como forma de se tornar cada vez mais independente e autónomo. Este é, aliás, o segundo movimento essencial que deveria estar contido no amor dos pais pelos filhos: deixá-los partir, fazer a sua vida e aprenderem a ser autónomos, sem lhes retirar, contudo o apoio.
A boa distância e as fronteiras do afecto
Não, os pais não têm que explicar tudo, e responder de uma forma explícita e crua às perguntas dos filhos pequenos lhes fazem sobre sexualidade. A partir dos três anos, como acima é referido, começa a haver interditos sexuais que não devem ser quebrados de nenhuma forma, a criança começa a tornar-se mais autónoma, a viver o seu próprio corpo, a afastar-se da mãe e do pai para explorar o mundo, e a manifestar uma necessidade imensa de privacidade, que é, afinal, o mais saudável dos desejos.
Em todo este processo cabe aos pais manterem-se a uma boa distância e, claro, colocar limites, como aliás é necessário em vários aspectos da vida da criança. Limites que a contenham são essenciais para uma boa construção. Haverá fronteiras na manifestação do afecto entre pais e crianças destas idades? «O afecto é sempre bem-vindo», esclarece Alexandra Medeiros, e «não devemos reduzi-lo por medo de sermos mal interpretados».
Salvaguardando intimidade e privacidade, é importante também diminuir a culpabilidade da criança sobre o seu desejo de fazer perguntas sobre estas matérias. A questão está na forma como se esclarece as crianças: «os pais devem falar com naturalidade e também sem grande culpabilidade aos seus filhos».
E o que «é constrangedor para os pais também deve ser valorizado», ou seja, se a mãe acha, por exemplo, se «sente mal quando o seu filhos pequeno, de 5 anos, volta a querer mamar», situação que pode acontecer quando nasce um irmão mais pequeno e o mais velho, e ele vive uma pequena regressão, não deve ter problemas em negar essa vontade.
Faz todos o «sentido que ela reprima esse comportamento porque é «desadequado». Contudo deve fazê-lo de «uma forma natural e não acusatória». E deve ajudá-lo a ultrapassar essa fase a que regrediu.
Casa de banho e quarto dos pais são zonas de acesso restrito e portas fechadas, assim como é preciso bater antes de entrar em sítios de maior privacidade. Convém «que a criança tenha o seu próprio quarto, que aprenda a crescer dentro dele, a dormir e a estar sozinha».
As permissividades, conclui Alexandra Medeiros, «provocam confusões em termos de intimidade corporal, e daí os limites serem imprescindíveis». Quem não os tem perde-se e, pior, «fica paralisado» em relação a tudo na sua vida. O afecto contudo, não tem limites. Saber que os pais os rodeiam de verdadeiro afecto, mesmo a uma certa distância, é suporte que vale ouro na vida de uma pessoa, criança ou adulto.
Publicado no site www.paisefilhos.pt
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