Era uma vez, um rei muito sábio que queria divulgar a paz. Resolveu criar um concurso para que todos os pintores participassem com telas que retratassem a paz. Todos se inscreveram e muitas telas foram entregues. A grande maioria trazia o retrato de praias paradisíacas, lagos serenos, algumas cachoeiras, jardins maravilhosos. Os quadros eram lindos. Porém, entre eles houve um completamente diferente que chamou a atenção do rei. Era a pintura de um mar revolto, com uma encosta escarpada, o céu estava cinza, havia raios, vento, e no meio da encosta um ninho com um casal de pássaros chocando seus ovos. O rei escolheu este quadro. Então perguntaram: majestade, por que este quadro? Ele é tão cinzento, sombrio. O rei respondeu: porque apesar da tempestade, os pássaros estão serenos, fazendo o que precisava ser feito. A paz é encontrar a serenidade, apesar da confusão e da escuridão que muitas vezes nos assola.
A paz é uma conquista, uma construção. Mahatma Gandhi ensinou que não há caminho para a paz – a paz é o caminho. É um exercício diário de olhar e de agir, explica Maria Tereza Maldonado. Outra ressalva importante é que a paz não é ausência de conflito. O conflito faz parte do ser humano. O conflito pode ser bom quando existe espaço para o diálogo, negociação e respeito.
E o que seria a violência? Violência revela incompetência. É uma maneira de obter à força algo que não se consegue de outra maneira. Violência não é só física. Ela se manifesta na pequena humilhação, na alfinetada, na indiferença à tristeza do outro. Existe uma violência oculta na família.
É na família que se tecem as relações que constituem cada um de nós. Quando identificamos padrões ocultos de violência em nossas famílias, descobrimos também a nossa força e a flexibilidade que ela possui. Assim, podemos colocá-la a nosso serviço e sob nossa responsabilidade. Vejamos algumas situações que denunciam a violência oculta nas famílias.
Ameaça de abandono x segurança afetiva – Em algumas famílias é difícil conversar, respeitar as atitudes e fazer negociações. Cito como exemplo uma moça que tem medo de manter relacionamentos amorosos por temer doenças sexuais e por causa disso ser abandonada pelos pais. Por um lado podemos perceber um medo natural que todos nós temos; por outro, uma insegurança afetiva muito grande e uma dificuldade da família de perceber esta menina como uma mulher e autorizá-la a viver como tal.
Congelamento do tempo x descongelamento do tempo – Algumas famílias param no tempo. Vivem no “como se…”. É como se papai ainda fosse vivo, como se ainda tivessem muito dinheiro, ou pouco dinheiro. Os costumes, atitudes e crenças não se atualizam e vivem rigidamente sem se atualizar de acordo com a situação de cada momento.
Desqualificação x qualificação – A desqualificação às vezes acontece de maneira sutil e, outras vezes, é bem declarada. Devemos aprender a ouvir o outro para conseguir negociar os problemas familiares a partir das diferentes maneiras de pensar e agir, alcançando soluções em comum que contemplem a todos.
Exclusão x inclusão – São atitudes cujos objetivos vão desde impossibilitar a alguém o pertencimento à família (negar-lhe o sobrenome, por exemplo), passando pela expulsão até a negação de sua existência por indiferença, isolamento ou segredo. Seria o caso da existência de filhos “escondidos” ou não reconhecidos. A inclusão é a atitude oposta. Reconhecer que a família precisa receber novos membros para que continue viva.
Falta de limite x limites – Colocar limite é uma atitude amorosa. Ensinar à criança que nem tudo pode ser como ela quer. Ela pode fazer algumas escolhas, mas outras precisam ser acatadas. Assim aprendemos a conciliar o prazer com a realidade. Exemplo: quando a criança está com fome e pede sorvete, ensinamos que sorvete não é comida. Então, ela fará a refeição e depois poderá ganhar o sorvete.
Indiferenciação x diferenciação – O ser humano nasce com duas necessidades básicas: pertencer (fazer parte) e ser quem ele é (sentir-se respeitado como tal). Respeito não implica em concordância. Por exemplo: somos todos de uma família, mas eu torço pelo Avaí e meu filho pelo Figueirense. Respeitamos esta diferença e brincamos como ela.
Julgamento x compreensão relacional – Quando alguma dificuldade acontece com um membro da família a primeira coisa que fazemos é buscar culpados. Buscar um culpado nos alivia, mas ficamos como vítimas. Enquanto somos vítimas, ficamos impotentes e sem saída. A saída para resolver a situação é buscar a compreensão relacional, a maneira de cada um contribuir (qual a parte de cada um) para o que acontece. Exemplo: minha mãe não acredita em mim, diz a criança. A dificuldade pode ser da mãe, da criança ou de ambas. A criança já pode ter mentido várias vezes e também não acreditar em si mesmo. É necessário fazer um pacto de sinceridade e confiança daqui para frente.
Negação x confrontação – Em nome da paz aparente muitas vezes a família deixa de lado situações delicadas. Por exemplo: o pai percebe que o filho chega alcoolizado em casa, mas faz de conta que não vê, que isto não é importante. Uma conversa sincera sobre a situação deve ser encarada, mesmo que isto traga tensão para a família.
Parentalização x desparentalização: Este fenômeno acontece quando se coloca a criança no lugar do adulto. A criança fica sobrecarregada numa missão impossível. A hierarquia fica negada. Os adultos é que são responsáveis pela criança e a condução da família e não o contrário. Exemplo: a filha de nove anos diz para a mãe: vê se hoje no almoço você não bebe demais.
Quantificação x acordos claros – Quando a família confunde afeto e dinheiro nas relações familiares. Indiretamente há um estímulo à dependência e uma dívida eterna. É necessário separar o afeto do dinheiro para que essas moedas de circulação na família não se confundam. É preciso saber que dinheiro não substitui afeto e vice-versa.
Silêncio x verbalização – O silêncio pode ser usado estrategicamente para obter poder ou torturar alguém. O diálogo, mesmo que difícil, é sempre a melhor saída para situações de conflito.
Vitimização x autovalidação – Cada adulto deve assumir responsabilidade pela sua vida e suas escolhas. Às vezes fazemos o papel da vítima e como vítimas exercemos um poder indireto, obtemos um ganho indireto. A saída é agir para validar-se, ou seja, sair da passividade para a atividade; acreditar em si e no seu desejo contando com o apoio daqueles que estão à sua volta.
Zombaria x humor – Zombar é um ato agressivo, disfarçado de brincadeira, pois desqualifica o outro e seus sentimentos. Já o humor traz intimidade e leveza. É o humor que salva o amor e não o contrário. Cultivar o bom humor é um hábito importante para uma melhor convivência.
Tudo que acontece na família acontece na escola e na sociedade de uma maneira mais ampla. Podemos dizer que são reflexos. Para construir a paz é necessário um cuidado constante, atenção, carinho, boa vontade e regras claras. Somente observando estes cuidados é que poderemos ter uma família mais pacífica, uma escola mais tranquila e sociedade mais civilizada. A violência (o bullying[1]) é reflexo das nossas dificuldades relacionais. Queremos defender o bem mantendo o mal longe de nós. Nada mais enganoso. O mal e o bem estão em nós, dentro de nós. Pais bons também erram e falham. Devem ser apenas suficientemente bons. A criança boa e a má é uma só. Deve ser apenas suficientemente boa, como nos ensinou Winnicot[2]. Precisamos ter humildade, vontade de aprender, aprender a pedir desculpas e desculpar, respeitar e ser respeitado e, assim, crescer com as diferenças num mundo tão rico e cheio de possibilidades.
Referências:
Motta, Elisa e Cavour, Regina. A violência oculta no cotidiano da família de A a Z. Produção gráfica IQI.
Rodrigues, Sonia e Soares, Lucia Mirna. Descobrindo como interromper o ciclo da violência utilizando a linguagem da programção neurolinguística – PNL. Espa Editora
Maldonado, Maria Tereza. Os construtores da Paz. Moderna Editora.
Madanes, Cloé. Sex, love and violence strategies for transformation. Norton & Company.
[1] Bullying – Expressão utitilizada para descrever atos de violência física ou psicológica. O sujeito vira alvo de violência e gozação de outros. Agora também acontece o cyber-bullying através da internet. Não existe respeito e a convivência fica difícil. Sentimentos de inadequação e vergonha deixam o sujeito impotente, com dificuldades para reagir. Quem agride, por sua vez, também tem uma dificuldade que não aparece no princípio. Exemplo: uma menina magra que tem medo de engordar e fica chamando outra de “baleia”.
[2] Donald Woods Winnicott (Plymouth, 1896 – 1971). Pedriatra e psicanalista inglês. Ensinou que pais devem ser apenas “suficientemente bons” – nos dois primeiros anos de vida os pais adaptam sua vida à vinda do bebê. E depois adaptam o bebê à vida. A vida é doce, mas não mole. Existem regras, nem tudo sai como queremos. Precisamos aprender a esperar.
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Publicado na Revista da Escola de Pais – Seccional de Biguaçu nº 3, p. 7, junho de 2011.
Márcia Alencar – Psicóloga – CRP 12/0559, hipnoterapeuta, psicoterapeuta de casal, de família e individual.
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