PARA ALÉM DO CERTO E DO ERRADO

E de repente, sem qualquer tipo de preparo ou de manifestação de desejo ou aceitação, nos vimos literalmente mergulhados numa realidade que ainda agora, meados de 2021, nos parece surreal. Com, e apesar de, todo o avanço científico e tecnológico alcançado pela humanidade ao longo de milhares de anos, nos vimos subjugados por um vírus. Um vírus com nova roupagem, um inimigo invisível e poderoso, que em poucos dias, obrigou países do oriente e ocidente a reconhecerem que estávamos assolados por uma pandemia.

E os quase oito bilhões de habitantes do nosso planeta, dos mais velhos aos recém-nascidos, incluindo até aqueles em gestação, viram suas vidas e planos serem metaforicamente embarcadas num mesmo navio, e obrigados a buscar formas de ajustar velas em mares nunca dantes navegados.

E tudo mudou… para todos!  Nada será igual ao que já passou.

A constatação acima é um fato, e como tal deve ser vivido: como a aceitação de uma realidade que não podemos mudar. Não encarada com tristeza conformada e saudosista, mas como uma constatação de realidade que pode nos abrir possibilidades, que pode aguçar a curiosidade infantil que trazemos dentro de nós, e que nos dá a chance de experimentar novos caminhos, adquirir novos conhecimentos e deixar para traz o supérfluo, o que não nos serve mais.

Chegamos ao momento de separarmos o urgente do importante, de darmos conta daquilo que nos envolve diretamente, de cuidarmos daqueles que estão ao nosso redor, e de nós mesmos!

Em meu trabalho com famílias, em conversas com as pessoas da minha família e com amigos e também em cursos, encontros e conversas com colegas terapeutas, tenho ouvido e constatado que muitas pessoas estão absorvidas por uma demanda excessiva de obrigações que não imaginavam possível dar conta, ou que não desejaram. Encontram-se fragilizadas, cansadas, dividindo-se entre tarefas que se multiplicam e nunca terminam, e com a sensação de não estarem fazendo nada realmente importante. Muitos relatam a vontade impossível de desistir de algumas tarefas que antes faziam com prazer; alguns referem-se a um crescente desinteresse pelo que fazem. Há quem diga, com espanto e alguma vergonha, que já se percebeu confundindo o dia da semana ou do mês em que estava.

Esses tipos de sentimentos em ambientes de trabalho e de saúde pública remetem ao que é conhecido como Síndrome de Burnout, ou esgotamento. Refere-se a tensões extremas e excesso de trabalho que levam um indivíduo a um estado de limite tal, que pode chegar a afetar gravemente a sua saúde física e a alterações importantes de comportamento.

A Síndrome de Burnout pode ser identificada com maior frequência em pessoas cujo trabalho envolve o contato com outras pessoas, como médicos, enfermeiros, cuidadores, professores e, mais recentemente, pais. Alguns dos sintomas que podem nortear a necessidade de procura de ajuda médica e/ou psicológica para diagnóstico e tratamento adequados são: sensação constante de negatividade; cansaço físico e mental; falta de vontade; dificuldade de concentração; falta de energia; sensação constante de incompetência; negação das próprias necessidades; irritação constante e alterações repentinas de humor e isolamento voluntário. Embora os sintomas mais comuns sejam psicológicos, pessoas com síndrome de Burnout também podem sofrer com dores de cabeça, palpitações, tonturas, problemas de sono, dores musculares, resfriados frequentes.

Reitero com veemência que apenas profissionais de saúde habilitados podem fazer diagnósticos e tratamentos adequados. Todos nós, de modo geral, nos sentimos cansados, irritados, às vezes com vontade de chutar o balde ou mandar tudo às favas. Também temos resfriados, dores de cabeça, às vezes palpitações e dificuldade para dormir ou para acordar, sem que isso caracterize alguma síndrome.

Recentemente tem-se falado sobre o termo burnout parental, popularmente adaptado e empregado para definir o estado de exaustão a que alguns pais têm se referido, por continuarem a exercer suas funções parentais e de trabalho, acrescidas de tarefas que antes delegavam ou dividiam com terceiros. São famílias nucleares que se viram bruscamente afastadas de suas redes de apoio material e/ou emocional habitual, como auxiliares domésticas, babás, professores, parentes e amigos. Muitas famílias também se viram às voltas com malabarismos dolorosos, mas necessários, frente a uma renda mensal diminuída ou quase zerada. E muitos estão lidando com as dores da perda de entes queridos ou com sequelas pós cura da Covid19.

Pesquisadores de todo o mundo estão debruçados sobre o assunto. Já temos estudos sobre burnout parental, como o conduzido pela Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, em parceria com outros países. De um modo resumido e bastante geral, são estudos pioneiros que adaptaram critérios do burnout profissional para estudar o estado emocional de pais de crianças e de adolescentes, neste período pandêmico. As primeiras conclusões a que chegaram, deverão levar a outros estudos.

Uma delas aponta para o fato de que a parentalidade exercida em países com valores individualistas é uma atividade muito solitária, se comparada a países como a África, em que há uma grande participação da comunidade na educação das crianças. A individualidade de um núcleo familiar, tão comum no ocidente, é um fator que submete os pais a elevados níveis de estresse, pois traz dentro de si o culto do perfeccionismo e tem como meta o sucesso dos filhos, que refletirá seu próprio sucesso como pais.

Também observaram um aumento da exaustão parental durante as medidas restritivas de confinamento, acentuadamente maior nos pais do que nas mães, já mais acostumadas a multitarefas envolvendo cuidados familiares e trabalho profissional. Interessante notar que a maior propensão dos homens ao burnout parental deve-se não ao volume de tarefas parentais que de fato eles tenham assumido durante a pandemia, mas à ausência de recursos emocionais para lidar com as pressões de cuidar dos filhos nas atuais e desafiantes condições – em confinamento, sem apoio da família extensa, com o ensino à distância e o teletrabalho, por exemplo.

Trazemos também boas notícias: em estudos paralelos levados a efeito em Portugal, foi constatado que 18,7% dos homens e 26,6% do universo estudado, relataram ter vivido o confinamento como uma oportunidade de redução do burnout parental!

Ansiedade, angústia, cansaço, desesperança são palavras recorrentes, muito faladas e ouvidas atualmente, ao lado de outras duas: gratidão e fé. A mistura particular que cada um faz desses sentimentos, acrescentados de alguns tantos outros, determina a forma com que cada pessoa reage aos desafios do dia a dia.

A pessoa que coloca em sua mistura porções generosas de gratidão e de fé, naturalmente estará mais forte e apta a reagir de maneira mais serena e adequada a acontecimentos adversos. Porém, não podemos nos esquecer que nem todos possuem os mesmos recursos internos ou externos para dar conta de adversidades. Há pessoas que não tem uma rede de apoio para dividir fardos físicos ou emocionais. Há aqueles que tem dificuldade em dividir seus problemas, ou que resistem a procurar, pedir e aceitar ajuda. Há os que se viram sem possibilidade de sustentar dignamente suas famílias. Há, na verdade, enorme diversidade de pessoas e situações, enfrentando de modos diferentes e com os recursos que possuem, a pandemia e suas consequências.

Espero que cada um de nós consiga colocar em sua mistura pessoal, alguns ingredientes que ajudam na superação de dificuldades e imprevistos, pandêmicos, ou não:

•          estabeleça uma rotina possível para você e sua família: a organização interna e externa tem efeitos positivos em nossos sentimentos, pensamentos e ações;

•          diminua suas expectativas: lembre-se de que ninguém poderá dar conta de tudo, e de todos ao mesmo tempo;

•          não menospreze momentos de descanso, de prazer e de cuidados pessoais; tome sol, caminhe ao ar livre;

•          respeite ritmos e gostos diferentes dos seus;

•          peça ajuda aos que estão ao seu lado; divida responsabilidades e cuidados com a casa e com a família;

•          ouça músicas que te alegrem, cante junto, e dance se desejar, ainda que sozinho;

•          durma; namore com seu parceiro; brinque com seus filhos, revejam juntos fotos e vídeos da família e de amigos; recordem bons momentos;

•          resgate seu bom humor, não leve tudo tão a sério; ria da situação, de você mesmo, das trapalhadas da família.

É a mistura equilibrada de ingredientes pessoais que nos deixará navegando sem rumo, ou nos levará a portos seguros.

Desejo que toda a humanidade, brevemente, possa se assentar em lugares mais confiáveis e confortáveis. Começamos um novo ciclo e estamos no início de novos caminhos. Praticamente, voltamos ao tempo das Entradas e Bandeiras, buscando rumos e riquezas diferentes e necessárias ao estágio em que vivemos.

E assim, relembrando Camões e nossos antepassados, acrescento nesta mistura palavras do poeta sufista persa Rumi para deixar um convite a todos: “para além das ideias de certo e errado, existe um campo. Eu me encontrarei com você lá”. Que seja em breve! Que Deus assim permita!

REFERÊNCIAS

doi.org

noticias.uc.pt

tuasaude.com

Regina Célia Simões de Mathis – Terapeuta de Casal e Família. Terapeuta Transpessoal. Terapeuta Comunitária Integrativa. Presidente do Conselho de Educadores da Escola de Pais do Brasil.

Publicado na Revista do 57 Congresso nacional da Escola de Pais do Brasil, Edição 2021, p. 20-21.

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