Pesquisas apontam que punições corporais contra crianças prejudicam o funcionamento cerebral e causam baixa autoestima
Estabelecer uma relação amorosa com as crianças e ajudá-las a se desenvolver é um desafio. Muitos pais usam recursos arbitrários — inclusive castigos físicos — para isso, mas profissionais e instituições afirmam que educar passa longe de palmadas e falas agressivas.
Mesmo que adultos tenham levado chineladas e agressões físicas “leves” enquanto cresciam, é preciso quebrar o ciclo, avalia a psicóloga Marcia Tosin, expoente do movimento da criação neurocompatível.
“Eles têm um problema porque batem em crianças, mas acham que não têm. Acham que é cultural, porque é admissível, a sociedade aplaude. A criança não é respeitada nem vista como ser humano. Parece que para ter dignidade é preciso ter uma certa idade, o que é um problema histórico.”
Palmadas e maus-tratos
Maus-tratos foi o segundo tipo de crime mais praticado no país contra crianças e adolescentes nos últimos dois anos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Conforme o levantamento, 90% das vítimas têm até 14 anos, sendo que a maior parte tem entre 5 e 9 anos, o que representa 35%.
Independente da intensidade dos castigos físicos, a palmada também é uma violência. “Isso eleva o estresse de uma criança. Ela está em um ambiente que deveria ser de segurança e acaba tendo uma resposta de estresse, de medo, justamente das pessoas que ela deveria confiar”, destaca Marcia.
Em 2014 foi criada a Lei Menino Bernardo ou Lei da Palmada, que proíbe castigos físicos e tratamentos degradantes contra crianças e adolescentes. Apesar disso, uma pesquisa de 2021 realizada pelo Instituto Ipos revelou que 62% dos brasileiros toleram bater para o “filho não virar bandido”.
A psicóloga afirma que o mais difícil é as pessoas educadas dessa maneira se abrirem para um novo pensamento. “Elas tendem a acreditar que a palmada deu certo com elas, então a gente só acredita pelo que a gente passou e aprendeu. Eles acham que são bons porque apanharam”.
“Impor limites não é educar”
A necessidade de “impor limites” é um tópico bastante discutido entre mães e pais em uma abordagem educacional mais rígida. Mas outras linhas teóricas de educação, como a “parentalidade positiva”, lidam com essa questão de maneira diferente.
Para Teresinha Bunn Besen, associada da Escola de Pais do Brasil — um movimento de trabalho voluntário que ajuda pais a educar seus filhos —, “impor limites não é a meta da educação, a meta é conduzir, levar à autonomia, tudo feito com carinho, com respeito”.
A psicóloga Marcia Tosin pensa da mesma forma. Ela criou o conceito de Educação Neurocompatível em 2015, no qual ressalta a importância do desenvolvimento dos pequenos. Segundo ela, termos como disciplina e obediência deveriam cair em desuso.
A mudança é a chave para construir outros tipos de relação, opina Teresinha. “Escuto com frequência ‘meus pais me ensinaram na base da palmada e da surra, e eu sou uma pessoa tranquila’. As pessoas querem repetir a mesma forma de educação, mas se você pensa assim tem que voltar a ver televisão em preto e branco… As coisas evoluem.”
Impacto nas crianças
Os efeitos negativos de palmadas corretivas puderam ser comprovados por meio de um estudo publicado em 2016 e realizado durante 50 anos, em parceria com a Universidade do Texas e a Universidade de Michigan.
Nele, os espancamentos foram apontados como causa de baixa autoestima e dificuldades em lidar com as emoções.
Diante disso, Marcia Tosin reforça que o olhar para a criança deve ser amoroso e responsivo, da perspectiva de uma criança. “Se você tivesse essa idade não faria o mesmo?”. Ela explica que, por apanhar, a criança entende que é má e merece ser punida.
“A gente tende a pensar que as crianças agem dessa forma porque manipulam, são desobedientes, fazem porque são birrentas e querem conseguir as coisas. Mas elas agem como seres humanos que estão aprendendo”, reflete a especialista em criação neurocompatível.
Em abril do ano passado, um estudo do “Child Development”, um dos mais prestigiados veículos científicos na área de desenvolvimento infantil, mostra que a punição corporal praticada contra crianças também pode impactar o funcionamento cerebral. O resultado é similar a agressões físicas mais intensas e até a abusos sexuais.
Mais de 60 países, incluindo o Brasil, tem algum tipo de lei contra o castigo físico. Recentemente, entrou em vigor no País de Gales uma norma que proíbe qualquer tipo de castigo físico contra crianças, mesmo por parte dos pais.
“A gente sempre quer corrigir a criança, mas é desnecessário. Ela deve aprender no dia a dia. Ela olha o que os pais fazem e repetem. Se o pai levanta a voz quando fica nervoso, ela vai fazer o mesmo”, aponta Marcia Tosin. “Se tratássemos nossos amigos como segundas crianças, será que teríamos amigos?”
Como os pais devem agir?
Tanto Marcia quanto Teresinha defendem que a criança aprende pela imitação, não pela imposição.
“A criança não aprende por ordem direta ‘não faça isso’. Basicamente vão aprender por relacionamento. Elas estão em um estágio de desenvolvimento que nós não estamos mais”, aponta a psicóloga.
Uma forma muito eficaz de educar é por meio da contação de histórias, porque existe a conexão com as crianças e a perspectiva de outras pessoas.
“Por exemplo, quando você conta como se sentiu quando alguém bateu em você na escola ou quebrou o seu brinquedo, ‘em uma situação assim eu agi dessa forma’, isso aumenta o repertório dela sem impor o que ela deve fazer”, aconselha Marcia.
Teresinha Bunn Besen, da Escola de Pais, diz que estimular a autoestima da criança é essencial para uma boa criação. “Elogiar é um recurso maravilhoso, todo mundo tem alguma coisa boa que vai sobressair e é preciso reconhecer, enaltecer isso na criança.”
Durante os encontros promovidos pela organização, as mães e pais relatam que alteraram comportamentos que praticaram durante anos. Uma mãe de Guaramirim, no Norte catarinense, (que pediu para não ser identificada) diz que a partir das reflexões percebeu que “precisa ser mais calma e amorosa”.
Ao se deparar com uma situação difícil, Marcia convida os pais a refletirem sobre a educação respeitosa. “Nessas situações sociais, agredir um adulto verbalmente é inadmissível, por que é tolerável com uma criança?”.
Escrito por Maria Fernanda Salinet, Florianópolis. Publicado no site www.ndmails.com.br
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