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“[…] o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como no provérbio,mas para muitos,como o sábio” (W. Benjamin)
Escrevo para conversar com os leitores da revista sobre a importância da narrativa na educação de crianças e o entendimento de pais e mães como narradores, a partir do pensamento do filósofo e crítico literário alemão, Walter Benjamin.
Foi talvez por viver com plenitude toda sisudez e obscuridade reinante no seu tempo, quando apelos de austeridade moral e pureza étnica e política se converteram em armas da hipocrisia generalizada, que culminou no holocausto e na morte de milhões, que Benjamin tem muito a nos dizer, sobretudo, considerando os nossos próprios atuais tempos sombrios.
O seu legado é o de uma narrativa sensível que despreza a guerra e o embrutecimento humano, proporcionando-nos belas passagens com reflexões sobre as chances de felicidade do gênero humano. E é justamente a trágica experiência da guerra que faz Benjamin se voltar àquilo que chamou de morte da narrativa.
No seu lindo e complexo texto “O narrador”, alerta para a trágica perda da experiência de contar histórias. Segundo ele, os soldados que vinham do front de trincheira da primeira guerra voltavam mudos, “não mais ricos, mas mais pobres em experiência comunicável”, chocados. E avança nos fazendo refletir que a modernidade e suas experiências de choque como as guerras, o noticiário implacável, a falta de tempo e de tédio, os diversos dramas urbanos, a banalização midiática da violência, os usos e abusos da tecnologia desumanizadora, tem nos deixado mais pobres, mais áridos de experiências, inviabilizando o poder da narrativa.
Como pode imaginar o leitor, é nessa agitação que nós, pais e mães, temos banido de casa a narrativa e a arte de contar histórias, pois todos nos quedamos segregados à solidão da falta de experiências coletivas. Padecemos da falta de tédio, ou seja, do contato improdutivo, da ociosidade da conversa, do devaneio familiar. Um sintoma claro desse absurdo é a conversa entre irmãos, pais e filhos, na própria casa, por whatsapp. É claro que só esse caso daria um novo artigo. Mas me permito a provocação.
Na contramão dessa história, Benjamin diz que o “tédio é o pássaro onírico que choca os ovos da experiência” e, sem ele, esvai-se a possibilidade de contar histórias, de transmissão de experiências e sabedorias, culminando com o desaparecimento do dom de ouvir e da comunidade de ouvintes.
Nesse movimento feroz que inicia com a modernidade e que nos avassala na contemporaneidade, a absoluta falta de tempo coincide com a decadência da narrativa, olvidando-se de sua importância na formação da criança. Recorrendo ainda a Benjamin, a contação de histórias para crianças provoca nelas uma sensação de felicidade pela “distensão psíquica” que provoca. Essa é a sensação da liberação do feitiço ou da libertação do prisioneiro ou prisioneira do confinamento físico ou místico a que se vê subjugado, como é narrado, por exemplo, nos contos de fadas. Comparativamente, essa é a libertação do mito, o triunfo da sabedoria sobre a ignorância e o mal, da reconciliação do homem com a natureza e consigo mesmo lá nos primórdios da sua existência. Por isso, para o nosso autor, o conto de fadas é a narrativa por excelência.
É justamente esse “estado de graça” vivido pela criança, na narrativa, que precisa ser recuperado, exigindo de seus educadores (pais, professores, cuidadores etc.) o papel de narradores.
A distensão psíquica, a descoberta do protagonismo humano na história, provoca certa catarse, enquanto alívio de tensões emocionais, tanto no adulto quanto na criança, mas é só na infância que nos permitimos ser felizes. Por isso o “conte outra vez” ou “conte outra” e mais uma… Quem já contou histórias para crianças sabe do que estou falando. Os olhos se arregalam nos momentos de tensão, brilham no clímax da história e, por fim, entram em transe com grande final. Esse conjunto de emoções produz uma felicidade tal que vivem pedindo para contar de novo.
Mais do que apenas contar uma história, a narrativa é uma transmissão de experiência. Nelas se transfere sabedoria, se dá conselho, se educa. Tanto que o exemplo de narrador para Benjamin é o marinheiro comerciante ou o camponês sedentário. Ou seja, é aquele que viaja e traz de longe suas histórias, epopeias, relatos, vivências… ou aquele que nunca saiu de sua terra, mas que já velho, viveu e conhece as tradições, os contos populares, as anedotas transferidas de boca em boca.
Quem de nós não se lembra do tempo em que nossos pais e avós narravam histórias? Narrativas de famílias, de pessoas antigas, de parentes distantes, de “causos e mais causos” que varavam a noite. De pessoas que até hoje pairam na nossa imaginação, sem importar se eram reais ou fictícios, tanto faz, o que sempre importou foi a autoridade do narrador.
E hoje o que fazemos? Temos transferido para a TV ou para o programa de computador a narrativa. Antes cheia de vida, agora se esvai no monólogo da máquina com a criança que, em vez de pedir para contar outra, aperta o retry, uma vez e muitas vezes, mortificando a narrativa. Falta aí justamente o coração da arte de narrar, o diálogo, que é a transmissão da experiência de quem conta, de quem molda a história imprimindo nela suas vivência, sua marca, ou como dizia Benjamin, “como a mão do oleiro na argila do vaso”.
Certamente a educação das crianças precisa hoje mais de mais experiências de vida e menos experiências de choque, isso é claro, se quisermos criar nelas algum senso de coletividade. A presença da narrativa neste caso seria uma boa saída, já que a vida na rua, onde se encontrava fartamente a narrativa correndo aqui e ali, no conto do homem do saco, da bruxa da casa tal, do velho que pega criança etc., tornou-se inviável, enclausurando-as em apartamentos e em casas fartamente gradeadas. Vale até mesmo o Era uma vez… criança que brincavam na rua…
Caro leitor, se você tem crianças por perto, conte um conto, aumente muitos pontos e lembre-se do que disse Benjamin:
“O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de conto de fadas … é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”.
Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccional da Grande Florianópolis nr. 7, 2017, p. 20.
Lidnei Ventura – Graduado em Pedagogia, mestre em Educação, Doutorando em Educação, Professor do CEAD/UDESC, Colaborador da Escola de Pais.
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