Uma lista de verdades que fui recolhendo de avós em dia mau. Uma lista de pensamentos de que não se orgulham, mas que lhes atravessam pela cabeça de vez em quando e que, embora raramente ou nunca passem a palavras ou atos, têm dificuldade em assumir. Até para si mesmas. Segredos escondidos, que só revelam sob anonimato, porque, argumentam, são tão esporádicos que não vale a pena confrontar com eles filhos, filhas, noras e genros. Teriam todos muito mais a perder, do que a ganhar com isso. O que às vezes é assim, são tão absurdos que não faria qualquer sentido verbalizá-los, mas outras não, porque o caldeirão de recalcamentos tende a um dia explodir, sem que se possam, então, controlar as consequências.
Mas, hoje, nesta página não entra moral. Nem culpas, nem juízos e condenações. São frases, apenas isso, o lado escuro de uma realidade tão boa e tão mágica como é ser avó. Talvez se reveja nalguma delas, e lhe traga um bocadinho de paz saber que não é nenhum ogre, mas apenas uma avó humana.
➔ Há dias em que ficar com os netos é uma seca;
➔ Há dias em que quando vê o número de telefone da filha/filho/nora/genro no telemóvel deixa tocar sem atender, e depois diz que está cada vez mais surda e não ouviu. Tem a certeza de que lhe iam pedir um favorzinho…
➔ Há dias em que tem tanta pena da sua filha/filho/nora/genro, vítima de filhos birrentos, que tem vontade de financiar a escolaridade dos seus netos num colégio interno.
➔ Há dias em que fica com os seus netos e espera não ter câmaras de vigilância em casa – a sua falta de paciência registada em vídeo é mais de pais do que de avós.
➔ Há dias em que um dos seus netos a irrita mais do que o outro, e tem dificuldade em esconder o seu favoritismo.
➔ Há dias em que todos a irritam solenemente, e tem dificuldade em disfarçar a sua vontade de que saiam depressa pela porta fora, e a deixem a ver uma série na televisão.
➔ Há dias em que dá por si a achar que os seus netos estão insuportavelmente mal educados e que se fossem seus filhos os esbofeteava a eito.
➔ Há dias em que não aguenta a transmutação dos seus netos de criaturas adoráveis em monstros mal os pais põem um pé dentro de casa (mesmo tendo consciência de que são todos assim).
➔ Há dias em que tem dificuldade em não lhes dizer que, pelo menos em sua casa, não pode usar aquela palavra que abomina (“desfrutar”, “apetece-me algo”), sabendo que foi aprendida com a sua nora/genro, e que o seu neto vai repetir o raspanete que levou.
➔ Há dias em que tem vontade de vestir os seus netos de maneira completamente diferente daquela em que lhe apareceram em casa. E pôr ou tirar laços e ganchos no cabelo, e claro bonés.
➔ Há dias em que controla com dificuldade a vontade de os levar ao barbeiro/cabeleireiro e mandar refazer o corte de cabelo .
➔ Há dias em que não aguenta o fanatismo clubístico dos seus netos e tem vontade de rasgar a bandeira que trazem ao pescoço. Não por ser do clube contrário, mas porque odeia o fanatismo que lhes é inculcado pelo seu filho/genro.
➔ Há dias em que lhe apetece ligar para a Comissão de Proteção de Crianças a queixar-se das horas a que os pais dos seus netos os deixam ir para a cama.
➔ Há dias em que tem vontade de enforcar os pais dos seus netos por lhe moerem a cabeça com as notas, com o “é bom, mas não chega”. Nesses dias não resiste a relembrar alto as notas dos seus filhos e/ou de genros/noras, se as souber e forem (como geralmente são) inferiores ao que agora exigem.
➔ Há dias em que lhe apetece deixar os seus netos comer fast food, porque já não suporta a forma talibã como seguem a dieta que o pediatra recomendou.
➔ Há dias em que só tem vontade de desobedecer a todas as instruções que a sua filha/nora lhe deixou, de tal forma sente que o seu neto corre o risco de se tornar num cãozinho adestrado.
➔ Há dias em que tem de morder a língua para não dizer o que pensa da outra avó, ou do avô, ou de parentes do “outro” lado.
➔ Há dias em que lhe apetece fazer uma fogueira de inquisição a todos os manuais de educação que os pais dos seus netos citam.
➔ Há dias em que, pura e simplesmente, não quer ser avó. Em que, citando Almada Negreiros, lhe apetecia dizer “Morra a Avó, pim!”.
Escrito por Isabel Stilwell
Publicado no site: http://www.paisefilhos.pt/index.php/opiniao/isabel-stilwell/7811-o-que-as-avos-nao-se-atrevem-a-dizer
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