O humanismo a princípio surgido como uma filosofia moral que, numa escala de importância, coloca os humanos como principais, no centro do mundo, tem várias vertentes e adquiriu ao longo dos tempos diversos sentidos, como o cristão, o renascentista, o positivista, o marxista, o universalista e, até mesmo, serviu de base para uma escola literária.
Para refletirmos sobre esse importante movimento da nossa história, trago neste artigo um resumo do pensamento da filósofa, linguista e psicanalista búlgaro francesa Julia Kristeva, descrito num discurso publicado no jornal Corriere dela Serra, em 20/10/2011. Segundo ela, humanismo é um grande ponto de interrogação a ser abordado com a máxima seriedade; um evento gerado e nascido na tradição europeia, grego-judaico-cristã, que não cessa de prometer, de desiludir e de refundar.
Neste novo século, mais do que nunca, o humanismo se afastou do teomorfismo, se distanciou de valores e fins superiores, e passou a questionar continuamente a situação pessoal, histórica e social dos seres humanos. E assim, nesse refundar-se, ele se desenvolveu e renasceu através de rupturas que são renovações. Transvalorando a tradição, tornou-se um aliado no combate à ignorância e à censura, e facilitou a coexistência das memórias culturais construídas ao longo da história.
Como filho da cultura europeia, o humanismo pode ser visto como o encontro de diferenças culturais favorecidas pela globalização e pela informatização. Ele contém, respeita, traduz e reavalia as diversas formas das necessidades de crer e dos desejos de saber que são patrimônio universal de todas as civilizações.
Kristeva acredita que, é por meio da singularidade compartilhada da experiência interior que podemos combater a nova banalidade do mal que é a automatização da espécie humana a que estamos assistindo. Ao lado da exaltação da linguagem, principalmente da linguagem do amor, alerta que a Babel das línguas também gera caos e desordens que o humanismo jamais conseguirá regular com a simples escuta, embora atenta, prestada às línguas dos outros.
E claramente diz que é chegado o momento de retomar os códigos morais do passado: sem enfraquecê-los com a pretensão de problematizá-los, e renovando-os a despeito das novas singularidades. Longe de serem puros arcaísmos, as proibições e as limitações são obstáculos que não podem ser ignorados, se não se quer suprimir a memória que é o pacto dos humanos entre si e com o planeta, com os planetas.
Segundo ela, a história não pertence ao passado: a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao, habitam o nosso presente. É desnecessário e utópico criar novos mitos coletivos; cabe- -nos a tarefa de reescrevê-los, repensá-los, revivê-los dentro das linguagens da modernidade, e no âmbito da realidade do multiverso em que vivemos.
O humanismo dá conta de nos ajudar a pensar na nossa finitude e ao mesmo tempo nos faz capazes de inscrever a mortalidade no multiverso da vida e do cosmos. Pode-se mesmo dizer que o cuidado amoroso do outro, o cuidado ecológico da Terra, a educação dos jovens, a assistência aos doentes, aos deficientes, aos idosos, aos fracos, não detém a corrida das ciências nem a explosão do dinheiro virtual. O humanismo não será um regulador do liberalismo mas ao contrário, será capaz de transformá-lo, sem inversões apocalípticas ou promessas de futuros gloriosos. Através dele, com a criação de uma nova vizinhança e solidariedades elementares, poderemos acompanhar a revolução antropológica que é anunciada tanto pela biologia que emancipa as mulheres, quanto pelo deixar-fazer da técnica e das finanças, e pela impotência do modelo democrático-piramidal, que não consegue canalizar as inovações.
A autora também afirma que o Homem não faz a história, mas que nós somos a história. Pela primeira vez, o Homo Sapiens é capaz de destruir a terra e a si mesmo em nome das suas religiões, crenças ou ideologias. E, pela primeira vez, os homens e as mulheres são capazes de reavaliar em total transparência a religiosidade constitutiva do ser humano.
E finaliza: “O encontro das nossas diversidades, testemunha que a hipótese da destruição não é a única possível. Ninguém sabe quais seres humanos sucederão a nós, que estamos comprometidos nessa transvaloração antropológica e cósmica sem precedentes. A refundação do humanismo não é nem um dogma providencial, nem um jogo do espírito: é uma aposta. A era da suspeita não é mais suficiente. Diante das crises e das ameaças cada vez mais graves, chegou a era da aposta. Devemos ter a coragem de apostar na renovação contínua das capacidades dos homens e das mulheres de crer e de saber juntos. Para que, no multiverso cercado de vácuo, a humanidade possa perseguir longamente o seu destino criativo.”
Penso que Julia Kristeva, na cidade de Assis, em 2011 traduziu e resumiu em sábias palavras os valores ocidentais que orientam a humanidade nesta maioridade do século XXI: individualismo, liberdade e prosperidade, preocupação com os filhos e com o universo. Que saibamos lidar com esses valores de forma afetiva, responsável e irmanada no respeito e no amor – vertical, em sintonia com o Superior, e horizontalmente, para, e com, todos os seres humanos de ontem, hoje e amanhã.
REFERÊNCIAS:
https://www.netquest.com/blog/br/blog/br/ humanidades-digitais http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/ article/viewFile/33879/pdf
http://www.cm-loule.pt/pt/noticias/10689/ filosofo-joan-manoel-del-pozo-abordahumanismo-no-seculo-xxi-em-loule.aspx
http://noselacosmf.blogspot.com/2015/07/ humanismo-e-humanidade.html
Regina Célia Simões De Mathis, terapeuta de Casal e de Família Presidente do Conselho de Educadores – EPB
Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – 56º Congresso Nacional – 2019, p. 6-8.
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