ÉTICA E EDUCAÇÃO CLÁSSICA: VIRTUDE E FELICIDADE NO JUSTO MEIO

 “(…) os seres humanos experimentam prazer compartilhando sentimentos, e sofrem quando não podem compartilhá-los…Ter bons sentimentos significa, em poucas palavras, saber comportar-se, saber o que fazer quando a dor ou a alegria nos invadem. Possuir a perspicácia e a sensibilidade suficientes para entender o que sucede com o outro, e o autodomínio e a delicadeza imprescindíveis para a exteriorização dos nossos afetos” (Victoria Camps, Virtudes públicas).

INTRODUÇÃO

A ação ética na matéria educacional tem sido objeto de frequentes reflexões. Fervilha hoje um debate que, de tão intenso, torna-se esgarçado, desgastado, próximo do nível opiniático, quase um slogan de senso comum nestes anos de fronteiras: fronteiras de séculos e de utopias; fronteiras de paradigmas e de referências; fronteiras, enfim, de valores. Sobre ética e educação, nosso tempo, contudo, parece não ter nada de novo a dizer. Quase tudo já foi dito. Será mesmo? O estudo da ética é sempre inseparável da discussão sobre a vida justa. E a vida justa como categoria só pode ser apreendida quando pensamos a realidade social: a vida com os outros; a interação coletiva; enfim, a esfera pública. De algum modo, o pensamento a propósito da ética implica em reflexões dela decorrentes, sobre temas como os da solidariedade, da tolerância, da responsabilidade, das identidades e dos direitos.

Como bem define Marilena Chauí, o termo ética advém do sentido grego de ethos: “caráter, índole natural, temperamento” (Chauí,1994a, p.340). A ação ética ancora-se, pois, na intencionalidade da ação, na relação da consciência para consigo mesma, na integridade do ser humano frente a seus semelhantes. A sujeito moral é, por definição, aquele capaz de distinguir entre o bem e o mal; e, portanto, capaz de se desviar do caminho prescrito, capaz de decidir, de escolher, de deliberar – pelo reconhecimento da fronteira entre o justo e o injusto. A confluência entre o tema da ética e a matéria educativa se coloca justamente nessa intersecção entre a autonomia da vontade e a possível formação pedagógica que a habilita.

Viver sob parâmetros éticos requer a eleição de princípios do agir, em consonância com os quais se possa pautar a trajetória da vida. Mas as escolhas não estão dadas à partida. É necessário – e recomendável – um exercício continuado para aprender a escolher, no plano dos valores. Em última análise, tal atitude de escolha e de aprendizado das escolhas perdura no decorrer de toda nossa vida. Mas como poderemos nos valer das opções previamente efetuadas como referência e roteiros de ação em nossa vida cotidiana? Este ensaio procurará discorrer sobre algumas aproximações possíveis entre moralidade e educação do juízo moral, à luz de balizas clássicas a propósito tanto da matéria da ética quanto da perspectiva educacional. Para nos aproximarmos deste campo interdisciplinar e multifacetado, optamos por recorrer a um entrecruzamento da perspectiva de alguns autores contemporâneos acerca do tema, com a matriz analítica advinda de pensadores clássicos, selecionados do campo da filosofia, da educação e da teoria política, pela contribuição que deram ao debate ético. Dessa maneira, compreendemos a possibilidade de reencontrarmos algumas das questões que, evocadas do passado na história do pensamento ocidental, interpelam nosso tempo e nossas atitudes no dia a dia, como atores da educação – professores e alunos. Retomando e recompondo modos de compreender o que poderíamos qualificar de educação ética, procuraremos refletir acerca de indagações intelectuais e morais postas pelo Ocidente. Diferentes épocas; variadas matrizes de pensamento; distintas expressões intelectuais; procuraremos tomar por alicerce fundante dos autores aqui recordados, a preocupação – comum a todos – quanto à possibilidade de compor o campo da ética, não como um dado natural e essencial, mas, sobretudo, como uma experiência apreendida, acumulada e pedagogicamente construída.

O presente estudo tem o objetivo de se debruçar sobre a intersecção do problema educativo para com a problemática ética, compreendendo a pedagogia como uma arte/ciência historicamente voltada para a busca do bem educar/instruir/formar. Com tal propósito, o texto mobilizará conceitos expressos na ética de Aristóteles, particularmente sua acepção de vida boa e de justo meio. Ainda na atmosfera mental da Grécia clássica, recorre-se ao termo específico grego e transdiciplinar na origem: paideia –cujos sentidos múltiplos imbricam instrução, educação, formação, cultivo intelectual, cultura geral, civilização… A seguir, dever-se-á pontuar alguns aspectos da concepção iluminista a propósito do tema, mediante o recurso à expressão kantiana de imperativo categórico, cujos significados gerais teriam sido precedidos pela concepção rousseauniana segundo a qual a vontade – e não a razão – é a marca distintiva do gênero humano.

A ideia piagetiana de uma ética da reciprocidade também é aqui mobilizada, à luz de uma breve exposição de sua crença na analogia entre as relações adultas e os jogos travados na infância. Nestes jogos infantis, para Piaget, as regras inventadas são exatamente necessariamente respeitadas pelo grupo social em jogo. Uma das mais respeitadas das normas espontâneas da criança seria, do ponto de vista de Piaget, a dimensão interativa da justiça distributiva, como princípio fundante da caracterização humana formada nos primeiros anos de vida. Abordando diacronicamente a temática, serão analisadas as ideias de outros autores, referenciados por variadas matrizes teórico-metodológicas, para efetuar tal diálogo entre educação e ética. A perspectiva que se pretende tomar abarcará o tema do ponto de vista educacional, procurando entretecer o relato com o que se compreende ser sugestivo e profundo para a meditação sobre o tema.

À luz de tal propósito, merece destaque o sentido conferido por Hanna Arendt para a acepção de autoridade como critério distintivo da relação assimétrica entre professor (e as gerações adultas, de maneira geral) e estudantes (ou as novas gerações). Arendt defende, como conceito e pressuposto operatório, a dimensão necessariamente conservadora do ato educativo: compete ao educador preservar do mundo as novas gerações e preservar o mundo das novas gerações – para que estas não destruam o suporte de memória e o acervo cultural acumulados pela Humanidade no transcurso de milênios (Arendt, 1979, p.242-3). Pela reflexão de Hanna Arendt, a dimensão conservadora do ato educativo faz parte da própria ação educativa. Assim compreendendo, a autora desafia o que qualifica como pathos do novo nas teorias pedagógicas, afirmando que o conservadorismo faz parte da própria essência da atividade do educador; dado que preparar as jovens gerações para o ‘novo’ seria encaminhá-las rumo ao desconhecido: aquilo que elas – quando crescidas – poderão vivificar; e não as gerações que as precederam. Como isso é basicamente impossível, compete à educação familiarizar as jovens gerações com o mundo que lhes preexiste[1]. Daí a falácia da ideia de preparação para o novo: “pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo” (Arendt, 1979, p.226). À luz da reflexão de Hanna Arendt, o máximo que o educador pode e deve fazer é colocar a criança em contato com o acervo/patrimônio cultural historicamente acumulado e preservado. Nesse sentido, existiria a dupla tarefa de preservação cultural e humana. Daí a ênfase quanto aos conteúdos clássicos a serem trabalhados com as novas gerações; posto que o professor, “face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – Isso é o nosso mundo” (Arendt, 1979, p.239). Nessa direção, cabe destacar o alerta de Hanna Arendt quanto à dimensão ética e existencial do trabalho em educação:

“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência, para a tarefa de renovar um mundo comum.” (Arendt, 1979, p.247)

Finalmente, o presente ensaio procura trabalhar alguns aspectos da meditação e da polêmica contemporânea sobre o tema da ética na educação perante um mundo globalizado: como conciliar a globalidade dos sentidos éticos com a mundialização da cultura de massas e com a tão frequente defesa da pluralidade cultural, como preceito metodológico do pós-moderno modo de agir? Quais as relações entre a formação escolar do século XXI e a validade do ensino de atitudes, hábitos e valores tidos por universais? Note-se que o texto aqui desenvolvido abarca a temática por uma perspectiva diacrônica, tendo em vista recordar tópicos do pensamento clássico sobre a interface ética/educação; e, do ponto de vista da pedagogia, identificar o estado atual do debate em nossa momentânea aldeia global.

ÉTICA COMO ARETAI: A VIDA JUSTA E BOA

Na Grécia clássica, a acepção da ética vinha, a dada altura, atrelada a alguns elementos constitutivos que supunham, no conjunto, a acepção de excelência intrínseca à expressão da aretai: bravura, ponderação, justiça, piedade, saúde, força e beleza. Daí decorria, para os gregos, as características distintivas da particularidade humana na correspondência entre corpo e alma. Como bem sublinha Jaeger:

“É a partir daqui que o conceito socrático de bom, o mais intraduzível e o mais exposto a equívocos de todos os seus conceitos, se diferencia do conceito análogo na ética moderna. Será mais inteligível para nós o seu sentido grego se em vez de dizermos o bom dissermos o bem, acepção que engloba simultaneamente a sua relação com quem o possui e com aquele para quem se é bom. Para Sócrates, sem dúvida, o bom é também aquilo que se faz ou se quer fazer por causa de si próprio, mas ao mesmo tempo Sócrates reconhece nele o verdadeiramente útil, o salutar, e também, portanto, o que dá prazer e felicidade, uma vez que é ele que leva a natureza do homem à realização do seu ser. Na base desta convicção aparece-nos a promessa evidente de que a ética é a expressão da natureza humana bem entendida. Esta distingue-se radicalmente da existência animal pelos dotes racionais do Homem, que são os que tornam o ethos possível.” (Jaeger, 1995, p.535)

A ética era, assim, derivada de tomadas de decisão; decisões postas em prática; prática mobilizada por ação dirigida ao bem, motivada pela busca de uma vida equilibrada e pautada em parâmetros tidos por valorosos. A harmonia, por si, decorreria da própria noção grega de excelência (aretai): o agir ético, então, corresponderia a um dado exercício da alma, exercício continuado e cotidiano, motivado pela própria suposição da universalidade do bom enquanto bem comum e compartilhado. Ora, se, em Platão, a virtude é posta como uma vocação a ser atualizada (Platão, 1973), para Aristóteles, a virtude seria uma disposição de espírito, que desabrocha pela força do hábito (Aristóteles, 1987). Remeter-se ao hábito requer, contudo, valorizar a formação: daí podemos depreender a dimensão pedagógica da ética.

De acordo com Aristóteles, existem duas espécies de virtude: a intelectual e a moral, sendo que nem uma nem outra estariam dadas à partida: em matéria intelectual, o lugar da formação seria o ensino; em matéria moral, a aptidão para a virtude decorreria da força do hábito, da prática, e, portanto, da ação social. Aristóteles não descarta, porém, o lugar da natureza na obtenção dos dons humanos. Pelo lugar natural, em tudo o que se revela expressão dos sentidos, o homem adquire a potência, a qual será, a seu tempo, exteriorizada em ato. Assim, a visão e a audição são potenciais no recém-nascido, mesmo que este ainda não se valha plenamente dos sentidos. São potenciais que, a seu tempo e progressivamente, serão atualizados na ação. No tocante à virtude, sucederia outro movimento: é pelo exercício que se adquire a prática do bem – ao praticar a justiça, tornamo-nos justos (Aristóteles, 1987, p.27).

“pelos atos que praticamos com os outros homens nos tornamos justos ou injustos;  pelo que fazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nos tornamos valentes ou covardes. O mesmo se pode dizer dos apetites da emoção e da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis, portando-se de um modo ou de outro em igualdade de circunstâncias. Numa palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticamos.” (Aristóteles, 1987, p.27-8).

Em Aristóteles, a noção de potência remete-se ao futuro reservado pela natureza. A adulto seria, então, a anterior criança que atualizou em ato sua potencialidade original. Tal desenvolvimento intrínseco às novas gerações, de maneira geral, corresponde à atualização de um telos, de um devir, de uma finalidade. É assim que a condição humana pode ser caracterizada como sensível e intelectual em potência. Contudo, para Aristóteles, a potência limitar-se-ia à possibilidade de “produzir o ser em ato” (Abbagnano, 1981, p.115). A ética seria, portanto, a vida boa enquanto vida justa na esfera coletiva. É na ação social e na relação com os outros que se constitui o fato ético como a desenvolução de um exercício capaz de tornar o homem propenso a conjugar razão e sensibilidade. Nesse sentido, para se tornar bom, deve-se praticar atos bons. A ética seria, assim, matéria da ação. Aristóteles frisa que o território ético firma-se, por definição, na prática, no hábito e no exercício. Não se forma o ser ético exclusivamente pelo conhecimento ou pela disposição do intelecto. A ética fala de perto ao espírito e à alma; e só pode ser reconhecida quando praticada:

“Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo ou temperante; mas não é temperante o homem que as pratica, e sim o que as pratica tal como o fazem os justos e os temperantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera o homem justo, e pela prática de atos temperantes, o homem temperante; sem essa prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom. Mas a maioria das pessoas não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira. Nisto se portam, de certo modo, como enfermos que escutassem atentamente os seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhes prescrevessem. Assim como a saúde destes últimos não pode restabelecer-se com tal tratamento, a alma dos segundos não se tornará melhor com semelhante curso de filosofia” (Aristóteles, 1987, p.31).

Aristóteles reporta-se àquilo que compreende como justo meio ou mediania para referir-se, de modo geral, à noção de ética. A Grécia convivia com a acepção de hybris, exatamente referida à ausência de medida e de limites; o oposto residiria, portanto, na harmonia e na excelência da aretai (Jaeger, 1995). Aristóteles, ao reportar-se ao ideal do justo meio, enfatiza a moderação como virtude capaz de entrelaçar prudência e o discernimento na ação: a medida exata entre dois extremos. O ser virtuoso adquire, ao agir, a propensão do caráter educado para a moderação. Podemos emprestar, talvez, a síntese de Abbagnano, ao discorrer sobre o conceito da ética em Aristóteles:

“A virtude moral ou ética consiste na capacidade de escolher o justo meio entre dois extremos viciosos, em que um peca por excesso e o outro por defeito. A coragem, que é o justo meio entre a vileza e a temeridade, incide sobre tudo aquilo que se deve ou não deve temer. A parcimônia, que é o justo meio entre a intemperança e a insensibilidade, diz respeito ao uso imoderado dos prazeres. A liberalidade, que é o justo meio entre a avareza e a prodigalidade, diz respeito ao uso ajuizado das riquezas. A magnanimidade, que é o justo meio entre a vaidade e a humildade, diz respeito à justa opinião de si próprio. A mansidão, que é o justo meio entre a irascibilidade e a indolência, diz respeito à ira.” (Abbagnano, 1981, p.123)

Se a escolha da ação é um requisito da prática humana, a sensatez apresenta-se geralmente no lugar intermediário. Ser adepto desse justo meio significa não se exceder e, por outro lado, não faltar às disposições do espírito. Entre atos e palavras, os extremos são exatamente elementos impróprios e contrários entre si, um como deficiência e o outro – seu oposto – como excesso. A ponderação, o equilíbrio e a moderação seriam, pois, fonte da sabedoria, entendendo-se por sabedoria sabor e saber, juntos e apurados (Duch, 1997, p.56). A sabedoria supõe certamente paixão pelo conhecimento. Essa paixão, esse desejo cultural incurável, acarreta para o sujeito cognoscente uma serena inquietação de espírito, uma cumplicidade para com as grandes questões intelectuais de seu tempo, uma harmonia eivada de espírito crítico; e, finalmente, um elevado grau de humildade, típica daqueles que sabem mais e melhor…

A liberdade da vontade do ser humano dirige a ação ética, a qual, por sua vez, reporta-se à plena identidade entre meios e fins da ação. Todo agir coletivo revela-se propício cenário para a prática da ética cotidiana; daí a relevância dada por Aristóteles para a amizade enquanto entrega desinteressada e presente na mútua benevolência, cuja interação não poderia deixar de contribuir para o bem comum. Amizade como escolha do outro; como reconhecimento do outro no outro e como encontro de si mesmo nesse reconhecimento do outro. Amizade como partilha e como projeto: exemplo da possibilidade, talvez, de uma sociedade mais fraterna. A amizade, confluência da ética para a comunhão, supõe a reciprocidade do bem e das fontes do prazer da convivência. A alma inteira se entrega nessa disposição do afeto para a amizade: “fazer desinteressadamente o bem ao amigo, desejar-lhe longa vida, desejar viver em sua companhia, compartilhar as mesmas ideias, opiniões e gostos, compartilhar alegrias e tristezas – desejar ao outro o que deseja para si mesmo. A amizade só existe entre os prudentes e os justos, sendo por isso condição e consequência da vida justa que é a vida na comunidade política.” (Chauí, 1994b, p.322-3) Em Aristóteles –como bem destaca Marilena Chauí- o exercício da amizade estrutura o próprio ideal da autonomia. Já que aos homens não foi concedida a plenitude divina, pela união mais desinteressada dos mesmos homens entre si, desenvolver-se-ia o movimento em direção a essa liberdade/autonomia, à independência do sujeito para encontrar em si e por si os motivos e as estratégias de ação. Tal autonomia é, contudo, um aprendizado, expresso fundamentalmente na vida voltada para o convívio ético: vida mais feliz e mais harmoniosa. Indispensável para o viver coletivo, a acepção de amizade ganha em Aristóteles um estatuto bastante elevado para a produção de decisões acertadas sobre o possível e sobre o desejável. A conduta e o ethos da virtude representariam, fundamentalmente, o afastamento humano da irracionalidade das paixões, do domínio dos desejos e das pulsões. A conduta virtuosa e o ethos da ‘vida boa’ pautar-se-iam pela perseverança quanto à retidão do agir e pela cautela perante as infortunas do acaso.

A educação ética – podemos dizer – supõe um certo disciplinar das vontades, um controle continuado dos instintos e da expressão das determinações externas. A ética é firmada no discernimento necessário entre o possível e o sonhado, na busca escrupulosa de construção de uma vida equilibrada, valorosa e justa, que resiste e recusa o voluntarismo das paixões. Nessa trilha, a identificação precisa do sentido da justiça e o discernimento das fronteiras que possibilitam a justa indignação se apresentariam como requisitos fundamentais:

“A justa indignação é um meio-termo entre a inveja e o despeito, e estas disposições se referem à dor e ao prazer que nos inspiram a boa ou má fortuna de nossos semelhantes. O homem que se caracteriza pela justa indignação confrange-se  com a má fortuna imerecida; o invejoso, que o ultrapassa, aflige-se com a boa fortuna alheia; e o despeitado, longe de se afligir, chega ao ponto de rejubilar-se.

(…)

“Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo, e em que sentido devemos entender esta expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos. Do que acabamos de dizer segue-se que não é fácil ser bom, pois em todas as coisas é difícil encontrar o meio-termo. Por exemplo, encontrar o meio de um círculo não é para qualquer um, mas só para aquele que sabe fazê-lo; e, do mesmo modo, qualquer um pode encolerizar-se, dar ou gastar dinheiro –isso é fácil; mas fazê-lo à pessoa que convém, na medida, na ocasião, pelo motivo e da maneira que convém, eis o que não é para qualquer um e tampouco fácil. Por isso a bondade tanto é rara como nobre e louvável” (Aristóteles, 1987, p.37).

De algum modo, a essência da ética aristotélica reside justamente na coincidência entre a desejada ‘vida boa’ e a realização das virtudes. Estas significam a máxima realização em ato da potência humana; ou, nos termos de Xavier Rubert de Ventós, a propósito do tema, a plenitude do ser consistiria – para Aristóteles – a realização mais plena daquilo que já se é. Ventós, contudo, pondera acerca da especificidade da noção de bom para o mundo grego; absolutamente distinta da acepção hoje corrente de ‘bom’ como aquilo de que gostamos e que nos apetece e do ‘mal’ como aquilo que nos causa repugnância (Ventós, 1996, p.60). Os significados que foram atribuídos pela modernidade à ideia do bom e do belo seriam, no parecer do autor, não apenas divergentes dos conceitos gregos e, particularmente, aristotélicos. Mais do que isso, o entendimento moderno do sentido de bom – agora separado da dimensão ética do bem – é relativista e narcisista: “pois reduz toda a questão concreta sobre a bondade objetiva de uma instituição, um governo, uma guerra, a uma questão de gosto. Uns gostam da segregação e outros preferem a integração; a alguns repugnam as guerras imperialistas e outros se comprazem com elas” (Ventós, 1996, p.60). Relativismos… Nada mais distante das virtudes aristotélicas.

Ora, efetuada esta ligeira aproximação dos sentidos inscritos na ideia de bem e de virtude em Aristóteles e no mundo antigo, caberia retomar um termo especificamente grego, intrinsecamente ético e carregado de sentido educativo: paideia. Contidos nos múltiplos significados do termo paideia poder-se-ia encontrar, simultaneamente, cultura, cultivo intelectual, instrução, educação, capacidade de aprender, desenvolvimento da memória e, especialmente, da “ânsia de saber” (Jaeger, 1995, p.558), sem a qual qualquer esforço pedagógico estará fadado ao fracasso. Note-se, assim, que a filosofia grega da Antiguidade já pontua a curiosidade intelectual e o desejo de aprender como requisitos para a acepção do verdadeiro ensino; aquele que deixa sua marca, e que parte do também desejo desse comungar o saber aprendido e compartilhar a cultura, com as gerações que a levarão adiante.

A MODERNIDADE COMO PEDAGOGIA DE UMA ÉTICA DO DEVER

O tempo da modernidade tem, talvez, na filosofia de Descartes sua expressão mais difundida. A busca de um método sistemático como roteiro para investigação racional, a dúvida metódica como anteparo do conhecimento racional, a atitude da crítica frente às dimensões incertas contidas no mundo dos sentidos e das percepções sensoriais, remetem à consagração da ideia de razão como motivo e instrumento do conhecimento. O século XVIII, com o movimento iluminista, levaria à radicalidade a exaltação da razão como fonte e estratégia para a regeneração coletiva das sociedades. Rousseau, nesse aspecto, torna-se voz dissonante dessa matriz cartesiana, tão cara aos seus contemporâneos, teóricos enciclopedistas. Rousseau, para além de quaisquer aspectos relativos ao conhecimento e à razão, na contracorrente de seu tempo, acentua explicitamente a dimensão da vontade humana como verdadeiro sinal da distinção do homem de seu meio natural. Por sua palavras, temos que:

“(…) não é pois tanto o entendimento que faz entre os animais a distinção específica do homem, mas a sua qualidade de agente livre. A natureza manda todos os animais e o animal obedece. O homem experimenta a mesma expressão, mas reconhece-se livre de concordar ou de resistir; e é sobretudo na consciência desta liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma; porque a física explica dalguma maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias; mas no poder de querer ou, antes, de escolher, e no sentimento deste poder só se encontram atos puramente espirituais, que não se conseguem explicar absolutamente nada pelas leis da mecânica” (Rousseau, 1976, p33)

Depreende-se do trecho acima transcrito que a tônica do pensamento rousseauniano reside na qualificação do dilema ético como um problema expresso antes na vontade humana do que na razão; mais do que isso, o homem, como ser capaz de tomar decisões, como ser capaz de se afastar da regra prescrita, teria nessa força da vontade seu principal distintivo de humanidade. Tendo na piedade sua virtude originária, o homem civil distingue o bem do mal: nessa opção estaria dada a escolha ética. As crianças, assim como o homem no estado de natureza, não conhecem tal distinção: daí a ausência de virtude na bondade natural; portadora apenas da piedade originária. O aprendizado da ética virá pelo exemplo, pela revelação, pela imitação. Parte-se do amor de si para desenvolver o amor pelo outro. O pudor, portanto, nasce do conhecimento do mal. Nos termos de Rousseau, sendo que a amizade costuma ser o primeiro sentimento do jovem educado, será a partir da sensibilidade por sua prática originada que o indivíduo adquirirá “sementes de humanidade” (Rousseau, 1979, p.242). Sendo a ética, em Rousseau como em Aristóteles, antes uma prática do que um aprendizado conceitual, recomendará o educador do Emílio:

“Em uma palavra, ensinai a vosso aluno a amar todos os homens, inclusive os que o desdenham; fazei com que ele não se coloque em nenhuma classe, mas que se encontre em todas; falai diante dele, e com ternura, do gênero humano, com piedade até, mas nunca com desprezo. Homem, não desonres o homem” (Rousseau, 1979, p.242).

A liberdade residiria, em Rousseau, no coração do homem. Tal sensibilidade seria – note-se – passível de educação. Ora, como o homem conteria em si aquele princípio inato de justiça expresso na ideia de piedade, existe possibilidade e necessidade de desenvolver tal disposição – de maneira a, para utilizar a expressão aristotélica, transformar a potência em ato. Diz o educador a Emílio, sobre o árduo e, por vezes, sinuoso aprendizado da moral:

“Meu filho, não há felicidade sem coragem, nem virtude sem luta. A palavra virtude vem de força; a força é a base da virtude; a virtude só pertence a um ser fraco por natureza e forte por sua vontade; é só nisto que consiste o mérito do homem justo; e embora digamos que Deus é bom, não dizemos que é virtuoso, porque não necessita de esforço para agir bem. Para te explicar esta palavra tão profanada esperei que estivesses em condições de me entender. Enquanto a virtude nada custa para ser praticada, pouca necessidade se tem de conhecê-la. Essa necessidade vem quando as paixões despertam; chegou agora para ti (…). Que é então um homem virtuoso? É aquele que sabe dominar suas afeições, pois então segue sua razão, sua consciência, faz seu dever, mantém-se dentro da ordem e nada o pode afastar dela. Até aqui não era livre senão aparentemente; não tinhas senão a liberdade precária de um escravo a quem se tivesse determinado. Sê agora livre efetivamente; aprende a te tornares teu próprio senhor; manda em teu coração, Emílio, e serás virtuoso. Eis, portanto, outro aprendizado a ser feito e este é mais penoso do que o primeiro, porque a natureza nos liberta dos males que nos impõe, ou nos ensina a suportar, mas nada nos diz quanto aos que vêm de nós; ela nos abandona a nós mesmos; ela nos deixa, vítimas de nossas paixões, sucumbirmos a nossas dores vãs e ainda por cima nos vangloriamos das lágrimas de que nos deveríamos nos envergonhar. Eis a primeira paixão. (…) É um erro distinguir as paixões em permitidas e proibidas, a fim de nos entregarmos às primeiras e nos recusarmos às outras. Todas são boas quando as dominamos; todas são ruins quando nos sujeitamos a elas. O que nos é proibido pela natureza é levarmos nossas afeições além de nossas forças; o que nos é proibido pela razão é querermos o que não podemos obter; o que nos é proibido pela consciência não é sermos tentados e sim deixarmo-nos vencer pelas tentações” (Rousseau, 1979, ps.324-6)).

A sabedoria como domínio de si e autoconhecimento traz pistas para remeter para a educação o debate a propósito da ética. A prudência e o discernimento das paixões, o domínio dos afetos, esse constante aprender a fazer de si próprio seu senhor, é o que demarca o campo do que poderíamos compreender como autonomia da vontade. Assim, a condição humana seria fundamentalmente, em Rousseau, o livre-arbítrio e a demarcações de escolhas que, sendo autônomas e espontaneamente engendradas no homem bem formado e bem cultivado, contribuam para orientar o sentido de sua ação prática.

Kant, na mesma direção, apresentará o território da ética como campo da distinção humana, da especificidade e particularidade do homem perante sua circunscrição. Como em Rousseau, para Kant, o homem é o animal da natureza destinado a escolher, inclinado, portanto, a eleger caminhos e propor trilhas; vocacionado para justificar suas escolhas. A opção pelo bem, em Kant, remete-se ao que o autor qualifica – desde a Fundamentação da metafísica dos costumes – como imperativo categórico; intuição primeira que, posta como dever, torna-se obrigação de consciência. O ser humano seria, em certa medida, o sujeito que escolhe as normas que, escolhidas, adquirem validade universal, fazem-se dever de moralidade; tornam-se justa intenção a regular o campo do agir. A vontade moral estaria, pois, em consonância com leis universais irredutíveis, as quais se remeteriam à máxima posta na grande referência da ação prática kantiana: o modo como atuamos no mundo deverá estar de acordo com a noção de bem que nós – seres capazes de discernimento entre o bem e o mal – consideramos universal; ou, por outras palavras, nossa ação deverá traduzir, tanto pelas estratégias adotadas na ação quanto pelos propósitos que nortearam a mesma, as feições que nós -criaturas morais por excelência- gostaríamos de poder tomar como essências de virtude para toda a condição humana.

Nos termos de Kant, ao pensar a ética, eu, sujeito da moralidade, “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (Kant,1995, p.33). O agir de acordo com virtude éticas universalmente válidas exigiria o reconhecimento destas últimas. Daí a necessidade do estabelecimento – no tocante às atitudes para com os outros, para conosco e para com o mundo – de ordenações do comportamento: imperativos categóricos. Estes fazem por coincidir meios e finalidades do agir do homem: “não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição, seja qual for o resultado” (Kant,1995, p.52). Assim, tais ‘mandamentos da moralidade’ seriam, por definição, distintos das ‘regras da destreza’, expressas sobretudo na dimensão da técnica, e dos ‘conselhos da prudência’ pertencentes a significados pragmáticos, cujos objetivos seriam o bem-estar e/ou a felicidade do homem em sociedade (Kant,1995, p.53). Agir pela ética não garante felicidade, bem-estar ou êxito. Supõe tão-somente a ação reta, condizente com os mandamentos da moral. Vemos, portanto, em Kant, a separação – que não havia em Aristóteles – entre ‘ética’ e ‘vida boa’. Quando o tema é a moralidade, para Kant, não é o resultado da ação que a determina, mas uma lei que transcende a própria vontade do resultado… Ora, sendo a moral universal, não há hipóteses: eu devo ou não devo; e sei exatamente qual deverá ser a escolha, caso minha opção seja ou não pela ética. A opção pela ética pode não resultar no resultado mais feliz, ou mesmo mais justo – em se considerando interesses específicos dos sujeitos da ação; porém a opção pela ética será condizente com dimensões inquestionáveis postas no mandamento/dever da ação reta.

“Porque, não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima que manda conformar-se a esta lei, e não contendo a lei nenhuma condição que a limite, nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da ação deve ser conforme, conformidade essa que só o imperativo nos representa propriamente como necessária. O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. (…) Uma vez que a universalidade da lei, segundo a qual certos efeitos se produzem, constitui aquilo a que se chama propriamente natureza no sentido mais lado da palavra (quanto à forma), quer dizer a realidade das coisas, enquanto é determinada por leis universais, o imperativo universal do dever poderia também exprimir-se assim: age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (Kant, 1995, p.58-9).

A acepção de vontade em Kant supõe a ideia da autonomia do sujeito, e o reconhecimento dela advindo, quanto às distinções entre o bem o mal. A Fundamentação da metafísica dos costumes expressa, pois, tal convicção quanto à existência de uma “vontade legisladora universal” (Kant, 1995, p.73), presente na individualidade da razão autônoma. Kant distingue a heteronomia e a autonomia concernentes ao uso da razão humana por analogia com a ideia de menoridade e de maioridade moral. Em sua Resposta à pergunta: que é Iluminismo?, Kant expressa sua crença no poder do conhecimento e da Ilustração como fontes de produção de uma autonomia coletiva e de um usufruto mais pleno do “sagrado direito da humanidade” (Kant, 1989, p.16).

O esclarecimento trazido pelo poder do conhecimento levaria a uma abertura do entendimento do indivíduo em sua liberdade, sem necessidade de recorrer a guias ou orientações externas, conduzindo o ser humano ao caminho da ilustração, consoante àquilo que o filósofo qualifica por maioridade política e social. A política do Iluminismo, pelo abrigo da razão, conferiria ao ser humano a possibilidade de se libertar da tutela e das opiniões dos outros: “não há perigo em permitir aos seus súditos fazer uso público da sua própria razão e expor publicamente ao mundo as suas ideias sobre a sua melhor formulação, inclusive por meio de uma ousada crítica da legislação que já existe” (Kant, 1989, p.18). Porém, a par da crítica, a máxima kantiana exige a obediência: no campo da ética, a obediência radicar-se-ia no imperativo categórico – aquele que traz por si um valor intrínseco, não se condicionando a nenhuma hipótese, condição ou interesse. Haveria um interesse público acima dos particulares e todas as ações do homem deveriam ser, no âmbito dos valores, situadas em tal vontade legisladora maior, passível de ser reconhecida pela razão individual autônoma. Para isso, como se afirmou anteriormente, é preciso ponderação e equilíbrio de julgamento em, pelo menos, três sentidos complementares:

  1. Primeiramente, ao julgar a ação em sua intencionalidade moral, há de se indagar da possibilidade de um poder querer que a máxima de nossa atitude seja passível de ser compreendida com valor de lei universal (Kant, 1995, p.62).
  2. Querer e dever, no sentido ético teriam, em princípio, um único sentido: as ações humanas passariam a ser compreendidas como passíveis de generalização. A cada decisão, no campo da virtude, o sujeito se depara com a reflexão acerca da validade de sua ação no sentido da universalidade que ela traz em si: em tal reflexão estaria posta a decisão ética. Nas palavras de Kant “o princípio da autonomia é, portanto, não escolher senão de modo a que as máximas da escolhas estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo, como lei universal” (Kant, 1995, p.85).
  3. Finalmente, constituindo a moralidade um território em absoluta sintonia entre o campo das ações e a sujeição a leis universais ditadas pela autonomia da vontade, o ser racional só poderá ser compreendido como um sujeito dos fins, de onde se depreende a absoluta necessidade de as estratégias da ação reconhecerem inequivocamente no homem sempre uma finalidade e jamais uma estratégia ou um meio para o propósito desejado. Haveria, na moral kantiana, total coincidência entre meios e fins. A compreensão da natureza racional como um fim em si acarretaria, consequentemente, a necessidade de entender no ser humano o princípio subjetivo da ação; expresso na máxima: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Kant, 1995, p.69).

O JUÍZO MORAL DA CRIANÇA E A AÇÃO EDUCATIVA

Retomando as sentenças kantianas, Piaget, particularmente em sua obra O juízo moral na criança, destaca diferentes etapas no que compreende ser o desenvolvimento moral das gerações imaturas. Para o autor, a autonomia não é um dado de natureza, mas um efeito do ato educativo e, sendo assim, haveria a possibilidade do reconhecimento de níveis mediante os quais o ensino procederia com vistas à construção da moral autônoma do indivíduo. Partindo da analogia operatória da relação da obediência às leis morais com a noção de obediências às regras do jogo, Piaget recorda que o pensamento moral, qualquer que seja sua orientação “consiste num sistema de regras e a essência de toda a moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras (…). As divergências doutrinárias só aparecem no momento em que se procura explicar como a consciência vem a respeitar essas regras. É esse como que tentaremos analisar…” (Piaget, 1994, p.23). Em um primeiro momento – destaca Piaget – a criança aprende a obedecer regras ditadas por seus pais, cujos significados lhes são alheios. Mais do que o conteúdo da regra em si, a criança obedeceria à sentença dos adultos que lhe cercam. Por isso, Piaget, parte do estudo dos jogos como fonte de identificação da consciência ou não, por parte das crianças, da razão de ser das regras de ação reta. Nesse sentido, o autor qualifica os jogos como paradigmáticos para a compreensão da prática normativa, no respeito e na obediência acarretados pelas normas a partir do momento em que são identificadas; para serem, em seguida à compreensão, autonomamente interiorizadas, em seus motivos e nos efeitos inerentes às suas práticas. O tempo da formação da moralidade seria condizente com a progressiva passagem da razão alheia para a razão autônoma. Tal passagem teria uma dinâmica própria, evolutiva, tanto biológica quanto social, tanto derivada da razão quanto da sensibilidade.

Observando o jogo das crianças, Piaget nota primeiramente uma justiça retributiva: o grupo de crianças costuma dar conta de afastar o trapaceiro do jogo, de castigar o menino que agrediu gratuitamente o colega, etc. Para Piaget, tal interação infantil contém um elemento que nem sempre corresponde à relação da criança com os adultos. Entre iguais, a criança compreende a razão de ser das normas. Quando é punida pelo adulto, a criança apenas expia sua culpa: o argumento de autoridade e o sentimento do remorso passam a calar em sua alma. Quando se trata do jogo entre crianças em igualdade de condições, modificam-se as razões e a própria lógica interior ao sentido de justiça estabelecido: como se a moral da autoridade fosse, pouco a pouco, sendo mobilizada para uma moral do respeito mútuo, da solidariedade entre iguais, da reciprocidade. Quanto mais crescida a criança, menos sujeita ela estará à exclusividade de uma moral calcada essencialmente no argumento de autoridade. Paralelamente ao desenvolvimento infantil, haveria uma submissão, não mais aos adultos, mas a uma voz/regra interior –que se lhe assemelha à regra do jogo. Tal respeito à norma interna remete a uma progressiva conquista da moral autônoma.

“Como a criança chegará à autonomia propriamente dita? Vemos surgir o sinal quando ela descobre que a veracidade é necessária nas relações de simpatia e de respeito mútuos. A reciprocidade parece, neste caso, ser fato de autonomia. Com efeito, há uma autonomia moral, quando a consciência considera como necessário um ideal, independente de qualquer pressão exterior. Ora, sem relação com outrem, não há necessidade moral: o indivíduo como tal conhece apenas a anomia e não a autonomia. Inversamente, toda relação com outrem, na qual intervém o respeito unilateral, conduz à heteronomia. A autonomia só aparece com a reciprocidade, quando o respeito mútuo é bastante forte, para que o indivíduo experimente interiormente a necessidade de tratar os outros como gostaria de ser tratado” (Piaget, 1994, p.155).

Daqui decorre a necessidade de as gerações adultas pensarem acerca do ensino/aprendizado da moral, antes de colocar em ação princípios de conduta, tantas vezes infundados, arbitrários ou meramente convencionais. Será que nós, adultos, sabemos o que fazemos quando nos pomos a educar nossos filhos para o campo dos valores? Usualmente, confunde-se ética com civilidade. O aprendizado do viver em sociedade, as boas maneiras convencionalmente apropriadas, não dão conta do juízo moral a se fazer a propósito do mundo, das relações humanas, das mazelas sociais. A família, por vezes excessivamente preocupada com a transmissão de modos de conduta, de atitudes, de um bem se comportar em público, torna-se, com frequência, ‘distraída das coisas mais importantes’. Será que ao educar, enfatizamos suficientemente o tema do respeito ao outro; ou apenas sublinhamos a ordem de silêncio perante a voz do adulto? Será que ouvimos os porquês de nossas crianças? Será que nos damos ao trabalho de estarmos suficientemente atentos para ficarmos zangados na hora certa, com a pessoa certa, na proporção adequada – como recomendava Aristóteles?

A sociedade contemporânea tende a afastar-se do sentimento de infância que vincou a modernidade. Hoje crianças e adultos vestem-se e, por vezes, se comportam do mesmo modo; assistem com frequência aos mesmos programas televisivos; têm, na mesma medida, acesso às informações da Internet. O sentimento de infância que caracterizou o mundo moderno tinha por pressuposto a ideia de que as novas gerações são tão inocentes quanto corruptíveis. Assim, passou a haver um certo pudor e a consequente preservação das crianças com relação às fronteiras de um universo adulto, para o qual se considerava que elas não estariam ainda preparadas.

Na Idade Média, pouco existia do reconhecimento da especificidade infantil. O mundo moderno procurou compreender a criança na criança; e não apenas o adulto que nela vinha incompleto. Com isso, surge uma certa sensibilidade social para com a infância, que está muito firmada na trajetória da civilização ocidental. Contudo, neste limiar de milênio, há quem acredite que essa situação se inverte. Os veículos de comunicação de massa e a indústria cultural produziram novas referências, mediante as quais, volta a se tornar algo imprecisa a fronteira que separa o mundo da criança e o mundo do adulto. As jovens gerações são cada vez mais cedo introduzidas no que pode haver de corruptor e de vicioso no mundo dos adultos. Ao mesmo tempo em que as crianças passam a se tornar precocemente adultas, o campo da maturidade, desvalorizado, apregoa, com inaudita ênfase, o desejo de retomada da adolescência. Adultos e crianças: todos desejando aparentar adolescência. Caberia perguntar, em tal cenário nebuloso, onde ficaria a responsabilidade em relação ao mundo. Caberia indagar a quem compete transmitir, preservar e fazer existir os valores e os conhecimentos acumulados.

Educar é, inequivocamente, invocar e evocar valores: há valores generosos e valores perversos. Uma sociedade de consumo, excessivamente pragmática e utilitarista como parece ser esta nossa aldeia do conhecimento global, poderá construir um campo de valores alternativos e suficientemente generosos? São infundadas as sentenças que ainda apregoam a igualdade, a liberdade e a fraternidade como princípios e como método da vida em democracia? Como ser livre sendo igual? Quais os impasses entre os clássicos direitos do homem e o tão atual chamamento à tolerância? Quais as relações entre os níveis de cultura –clássica/erudita; popular/espontânea; massiva/de indústria cultural? Como pensar as interfaces do projeto escolar à luz dos incontáveis recortes culturais presentes em cada sociedade? Como se dá a relação entre escola e família no mundo contemporâneo? Como pensar o universo dos direitos com a necessária formação para os deveres?

Supor um propósito ético em qualquer projeto educativo remete-nos à acepção primeira de uma formação humanista; um voltar-se para o conhecimento desinteressado, ele mesmo compreendido como imperativo categórico da ação educativa. Não é possível educar sem ensinar. Porém a instrução exclusivamente não educa; não prepara para a sabedoria. Como vimos, originariamente, o termo sabedoria contempla em si saber e também sabor. Deve-se sentir o sabor do conhecimento. Mas é preciso que, em educação, se tenha o desejo de ir sempre além. O conhecimento e a sabedoria podem ser complementares quando o professor se torna mestre… O mestre faz mais do que colocar os estudantes em contato com o conhecimento acumulado. O mestre transmite o saber, mas inscreve na transmissão sua própria marca pessoal; seu sinal. Mostra caminhos e revela segredos, com suor e com sangue descobertos.

Mestre é aquele que se mostra capaz conduzir a adesão da juventude para o campo das virtudes e para o campo do saber: com palavras de rigor e com gestos de afeição; com desenhos de utopia e com a radicação da experiência; com razão e com o coração. Quando Georges Gusdorf indaga dos educadores “professores para quê?” (1970), diz o seguinte: a “indecisão fundamental corresponde a um dos dramas secretos do mestre. Entre aquele que o é autenticamente e a falsa testemunha não há, talvez, outra diferença: o verdadeiro mestre duvida da sua capacidade mesmo quando esta é unanimemente reconhecida por aqueles que o rodeiam” (Gusdorf, 1970, p. 154). A palavra-testemunho da verdadeira mestria torna-se lição – no sentido medieval do termo -, senha para que o discípulo, pelo próprio ato de ser despertado, descubra a si mesmo e à sua humanidade; desenvolva suas habilidades; transforme em realidade seu potencial. Na trilha da obra-prima de Gusdorf, o verdadeiro ensino fala também por seus silêncios (Gusdorf, 1970, p. 143). Em tal movimento, a mão do mestre acompanha seu aluno, com a autoridade que seu lugar lhe confere, ainda que, para além de palavras, esta traga muito de gestos e de silêncios: auctor; ou aquele que cria algo.

Nos termos de Lluís Duch, “o bom uso da tradição é um negócio diretamente relacionado com o exercício da autoridade, sobretudo uma autoridade que se há de transmitir e de fazer vigorar no presente, enquanto fator essencial para a maduração, crescimento e desenvolvimento das pessoas concretas (Duch, 1997, p.66)”. Retomando Piaget e Huizinga, Duch coloca na capacidade lúdica um dos elementos mais importantes da configuração da plasticidade humana; do que resulta a capacidade do homem para aprender. Haveria, pois, uma antropologia possível de tornar o passado e a experiência vivida peças relevantes para o jogo da vida presente. Duch destaca, para tanto, a necessidade operatória de se pensar o tempo como se de uma diversão ele se tratasse. Partindo da capacidade humana para a admiração e, em seguida, talvez, para a indignação, o autor aqui distancia-se da ideia de tempo como uma linha evolutiva cronológica, presa exclusivamente à dimensão das regularidades, para dar o devido destaque a uma pedagogia que, se é um tempo de espera da previsível continuidade, também é da expectativa de uma projeção e uma aposta no futuro; futuro sempre indeterminado, pautado pela promessa do acaso e do inesperado…

Em algum sentido, retomamos aqui a acepção grega de kairós, mediante a qual a ideia de tempo reside no instante que se privilegiou, na oportunidade em que se mergulhou… Assim determinados a viver o tempo também pela magia do instante, será possível engendrar uma pedagogia onde a esperança deixe de ser apenas uma palavra de efeito. Mais do que isso, a esperança do educador supõe construção de um território de crenças compartilhadas, onde a igualdade de oportunidades ancore a livre manifestação dos talentos; onde a solidariedade e a fraternidade sejam os ternos contrapontos à necessária inscrição da identidade individual como preceito metodológico da sociedade cidadã.

Pensar a universalidade e o coletivo como pressupostos em que se radicam o específico, o efêmero e o pluralismo requer a edificação de uma ética pública que talvez também esteja posta à prova da escola, passando pela sala de aula; ética esta que credita às gerações mais jovens as esperanças de tempos melhores. E que alicerça sua própria esperança/expectativa nos pilares de um triplo presente, expresso na atualidade que experimentamos quotidianamente, no passado como memória atualizada e no futuro como um leque sempre aberto de possibilidades e de construções (Martins, 1998, p.74). A educação para a ética se firmaria mediante a reafirmação dos preceitos da democracia e, ao mesmo tempo, mediante a ampliação e o reconhecimento de um alargamento do campo desses direitos, que, quanto mais coletivos tendem a ser mais universais. Pensar a universalização dos direitos é, contudo, atentar para a necessidade do reconhecimento das especificidades, das desiguais manifestações do território da cultura. É preciso, como destaca Guilherme d’ Oliveira Martins, dar, sim, lugar ao diferente. Mas é imprescindível, para tanto, que este diferente esteja necessariamente inscrito em um “universalismo onde todos caibam” (Martins, 1998, p.83). Educar requer compromissos; compromissos supõem pactos; pactos remetem-nos, como por um eterno retorno, ao contratualismo como base da acepção de direito, de dever e de ação moral no mundo contemporâneo:

“O pluralismo deve ser, deste modo, assumido no sentido forte, e não no sentido fraco – estamos perante um diálogo aberto, em que os valores éticos e de cidadania não podem ser esquecidos ou desvalorizados e em que as diversidades culturais se interpenetram. E, se falarmos de valores, referimo-nos, antes de mais nada, aos que fundamentam a democracia, considerando esta ponto de encontro e de afirmação da dignidade, da autonomia e da responsabilidade. A democracia não pode cultivar, assim, a neutralidade sobre os seus fundamentos e sobre a sua legitimidade (…). De fato o que está em causa é a procura de uma posição equilibrada entre o que distingue e o que une a humanidade.” (Martins, 1998, p.82)

Norbert Bilbeny, a propósito, ao debater o dilema ético intrínseco às sociedades contemporâneas em virtude do impacto do discurso acerca das identidades, das diferenças e da pluralidade cultural, defende o que qualifica por minimalismo ético; qual seja, aquele que se coloca frente à vida social como um ‘mínimo comum’ fundado nos inalienáveis direitos fundamentais, a partir dos quais poderão conviver todos os outros direitos concernentes à diversidade ou às distintas especificidades. Para esse autor, os tempos que correm exigem a redução da universalidade dos valores a um mínimo denominador comum, expresso, para além da noção de racionalidade autônoma, em preceitos como os da reciprocidade, da solidariedade, da reflexividade e, até, da sensibilidade. O mundo contemporâneo exigiria, nos termos de Bilbeny, novos modos de olhar, sem que, para tanto, nós abdiquemos do reconhecimento de nós mesmos no outro e do outro em nós mesmos – ainda que o eu e o outro sejam tão diferentes quanto iguais. Haveria, para a compreensão do mínimo comum da ética, um dado primado do campo sensível e da prática da ação moral, o que retomaria – ainda que não de maneira manifesta – a vertente de uma moral pensada como “vida boa” em sociedade. Nos termos do autor:

“(…) pensar ou representar mediante conceitos morais é, a seu modo, fazermo-nos presentes no outro, tornarmos o outro presente em nós mesmos e apresentar, assim, aos sentidos, um reconhecimento. Não é nenhum círculo vicioso; é a intersecção de planos que constitui cada realidade pessoal e por meio da qual cada um distribui, com maior ou menor acerto, seu patrimônio moral. Os olhos e as mãos ajudam a fazer a ética, mas a ética ajuda também a tornar visível e tangível o mundo que vemos e tocamos.” (Bilbeny, 1997, p.190)

A ÉTICA NO JUSTO MEIO: ENTRE O DEVER E A FELICIDADE

Victoria Camps qualifica o conflito ético como um dilema entre responsabilidades que, por vezes, tem por ponto de partida a divergência entre princípios contraditórios, porém válidos e competitivos entre si. Assim – sugere a autora – é necessário que a concepção de moralidade não seja tão abstrata a ponto de se desvincular por completo de seu contexto de produção. Acerca do tema, Camps atenta para o que reputa ser traduções de modos de viver em sociedade, as quais seriam, em si, tão diferentes quanto complementares. Há, no parecer dessa autora, duas perspectivas morais, consoantes a hábitos herdados e tradições culturais acumuladas pelos dois gêneros: uma ética da justiça, com matriz masculina; e uma ética do cuidado, de origem feminina. Para cada um desses modos de agir, no campo da ação moral, haveria necessidade de um aprendizado específico, de uma pedagogia da razão, por um lado; e da sensibilidade, por outro. O objetivo da educação seria, para Camps, uma atualização/negação da máxima de Píndaro na Grécia arcaica: “torna-te o que tu és”. Como teórica da política, Victoria Camps explicita o sentido de tal sentença: “de acordo com a fé aristocrática que professa o poeta, a virtude não se aprende, leva-se no sangue. Chegar a ser o que se é consistiria em não trair nem deixar de aproveitar a nobreza e o lugar que, desde o berço, se possui” (Camps, 1996, p.145). A modernidade reservou papel oposto para o lugar social da educação: exatamente o de romper, pela dialética, com tal fatalismo elitista e aristocrático.

Educar, hoje, é e deve ser, na contramão da sentença de Píndaro, tornar a condição humana em sua plenitude ao alcance de todos; nem que para isso sejam desafiadas as determinações do contexto social; nem que para isso se deva lutar contra algum limite da hereditariedade. Tal desafio supõe um dado ideal de humanidade; uma concepção clara de virtude; e um lugar explícito para a recolha e seleção do saber acumulado com vistas à transmissão cultural. Victoria Camps sublinha, em sua reflexão acerca do espaço público das virtudes, que “ter uma identidade é conferir unidade à própria vida, recolher o passado e projetá-lo adiante, fixar valores, marcar continuidades e transições. Enfim, fazer da própria existência uma narração com sentido” (Camps, 1996, p.146). Assim concebida, contudo, a identidade supõe o cruzamento de três níveis distintos nos quais a marca da individuação se imprime: a Humanidade toda como pressuposto; a comunidade como pertença; a pessoa como individualidade. Cada uma dessas esferas teria, simultaneamente, um dado grau de autonomia e um significativo nível de subordinação umas às outras. Ser livre, assim, não pode prescindir da demarcação da singularidade; mas não pode, pelo lado oposto, prescindir do reconhecimento da máxima do bem comum como objetivo maior da ação em sociedade. Somente pelo justo meio, talvez pela mediania aristotélica, a condição humana se inscreve plenamente no sujeito. A democracia como método requer o complemento da tolerância, como exigência de adequação ao bem da coletividade; tal imbricação contempla em si “a atitude distante do espectador e o compromisso responsável do homem prudente” (Camps, 1995, p. 89).

Tomando como essencialmente coletiva a ação moral, Victoria Camps retoma Kant especificamente no que este postula como dever da ação reta universal e retoma também Aristóteles na prospecção de uma “vida boa” como resultado da ação moralmente defensável. Porém – reconhece a autora – tanto a universalização dos pressupostos morais quanto a correlação da virtude ética com a felicidade não passam de ficção, em termos da prática histórica. O próprio interesse coletivo é histórico e há valores tão válidos quanto contraditórios entre si. Sob tal aspecto, não haveria consenso moral, tomadas as culturas em suas diversidades históricas, geográficas e simbólicas. Por isso, a noção de pacto como instrumento para tornar a justiça um artifício operatório faz-se ainda apropriada e estratégica para a reflexão ética contemporânea:

“O que em nós há de divino nos capacita a esperar ocasiões de felicidade, e reconhecê-las quando aparecem. Trata-se, então, de outra noção de felicidade, a que nos deixam os românticos da qual decorre a própria ideia que se tomou como ponto de partida: a felicidade como obra, enérgeia, vida ativa. (…) ser ativo é o destino do ser humano. É nos momentos de atividade plena, de Humanidade completa, de saturação humana, que se encontra a felicidade. Não é a beatitude dos deuses: é o desigual acontecer humano que, de vez em quando pode dizer como Fausto: ‘detém-te, formoso instante, pois me fazes feliz’. A felicidade é instantânea porque consiste na coincidência contigente dos objetos com nosso eu. A condição da felicidade é desfrutar do instante sem adormecer nele, porque quem adormece perece. A eudaimonia, o bom daimon é um dom, mas frequente e reconhecível. Recordável. Reside nisso aquilo que jamais desejaríamos esquecer ou perder: a narração da vida tal como gostaríamos que ela fosse.” (Camps, 1995, p. 139).

A ética é uma questão em aberto, como em aberto são sempre os grandes temas que tocam a fundo a condição de ser humano. Educação e ética são dois pólos de uma mesma construção: um mundo mais fraterno e mais saudável, para o indivíduo e para a coletividade. Sendo o homem o único animal capaz de fazer promessas, temos no ser humano um possível cumpridor de leis que a si e aos outros – em interação – estabelece. Cumprir tais leis significa seguir a força da vontade autônoma; suspender as paixões até o limite do possível. Significa, também, um continuado exame dessas leis, sujeitas, em alguma medida, a periódicas revisões.

A ética, finalmente, é crença e é pacto; é pressuposto e é compromisso; é aprendizado e é experiência; é hábito e é disciplina; é indagação e é convicção; é suficiente e provisória, como a vida. E, sobre essa utopia de uma ética, a um só tempo, fraterna e pública, faço minhas as palavras do poeta português Fernando Pessoa, com as quais eu concluo:

 “Quem sabe o que é a alma? / Quem conhece que alma há nas coisas que parecem mortas. / Quanto em terra ou em nada nunca esquece. / Quem sabe se no espaço vácuo há portas?/ Ó sonho que me exortas a meditar assim a voz do mar, / Ensina-me a saber-te meditar.” (FERNANDO PESSOA).

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Carlota Boto

Professora Efetiva de História da Educação na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Campus de Araraquara). E-mail: carlotaboto@uol.com.br

Publicado no site www.scielo.br


[1] (…) o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo” (Arendt, 1979, p.226)

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