Recebi, lisonjeado, o convite para escrever um texto para a revista “Escola de Pais”. Apesar de contente, confesso que fiquei receoso com este desafio. Fui imediatamente para internet, e consultei alguns artigos publicados nesta revista. Todos muito bem escritos por pedagogos, psicólogos, educadores e outros de notório saber relacionados à área da educação. O tema proposto foi “valores e limites na família”. Perguntei-me o porquê do convite, pois apesar de pai de dois filhos, agora adolescentes, não possuo nenhuma titulação na área educacional. No máximo, publiquei alguns textos despretensiosos para um grupo fechado de amigos no Facebook, dividindo as minhas aventuras de pai, e só.
Para os leitores não pensarem que estou a beira de um “colapso nervoso” descrevo dois acontecimentos passados há alguns anos, e que serviram de fio condutor para o texto. Estava eu na fila do caixa de uma padaria. Na minha frente uma mãe com uma criança de colo. A criança, aos gritos, exigia que a mãe lhe comprasse um doce, o que foi negado. Imediatamente, em um acesso de fúria, começou a esbofeteá-la no rosto com muita força. A mãe não conteve a criança. Falava calmamente para o filho parar, enquanto isso, a criança mais enfurecida, gritava e dava-lhe mais tapas. Tamanho foi o escândalo que a criança venceu. Foi dado a ela o que ela queria. Na fila aquele silêncio sepulcral. Com certeza, se houvesse uma máquina que revelasse os pensamentos como nas revistas em quadrinhos, os balões estariam preenchidos com: “Ai se fosse meu filho…!”, “Na minha época isto não aconteceria…”, “Uma palmadinha na bunda é um santo remédio…” (o conselho tutelar vai me autuar por causa disto!), entre outras “pérolas” que passaram pela imaginação de todos os que estavam ali.
O segundo episódio aconteceu duas semanas após o ocorrido na padaria. Recebemos o convite para participar na escola, de uma palestra com uma psicóloga que abordaria o tema “Limites na infância”. Para minha surpresa, a psicóloga palestrante era aquela mãe que foi esbofeteada pelo filho na padaria! Cético, assisti a toda a exposição, totalmente perplexo com sua fala, que enfatizava a importância da atitude firme dos pais perante aos excessos dos filhos para estabelecer limites. Impressionou-me a quantidade de pais ansiosos por conselhos sobre o que fazer sobre o comportamento inadequado dos filhos. A exposição virou uma verdadeira catarse e consultoria sobre os casos particulares de cada pai. Não tive coragem de relatar a cena presenciada na padaria algumas semanas atrás, demonstrando os “limites” que a psicóloga aplicava ao seu filho. A tal palestra só serviu para constatar aquela máxima que diz que, teoria é uma coisa, mas a prática é outra bem diferente.
Relembrando esses fatos, achei melhor escrever um texto falando de pai para pai. Tenho convicção que o primeiro passo para começarmos a mudar o mundo é o posicionamento franco e aberto. Não é fácil. Nos dias de hoje, aceitamos passivamente os fatos ou condições impostas, sem sequer questioná-las. A justificativa sempre é de que temos de nos adaptar à mudança dos tempos. Engolimos tudo passivamente. Nunca estivemos tão apáticos. Não tenho pretensão alguma de ser o dono da verdade, mas acho que o óbvio tem que ser dito.
Nossos pais e avós não tinham nenhum acesso ou tanta discussão sobre teorias psicológicas ou pedagógicas de como criar os filhos e nos criaram muito bem. Seguiram simplesmente o que há milênios a humanidade utiliza para constituir suas famílias: o instinto e o coração.
Vivemos um tempo em que nossa qualidade de vida melhorou substancialmente. A tecnologia, que há alguns anos era tema de filme de ficção científica, agora é uma realidade que bate às nossas portas. Temos acesso fácil às informações, e o conhecimento progride e se expande em proporções geométricas. Paralelamente, as famílias estão sentindo-se afetadas com estas rápidas mudanças, e não estão tendo tempo de ajustar-se a estas transformações. As informações chegam a nossa casa e não temos tempo de filtrá-las.
Mas resta a pergunta: porque hoje estamos tendo mais dificuldade na educação de nossos filhos? E o que toda esta minha introdução tem em relação com valores e limites?
Observemos as bruscas mudanças que ocorreram com as famílias nos últimos tempos. Não sou tão velho assim. Tenho 44 anos bem vividos. Vivemos uma época em que a sociedade consumista busca a felicidade a qualquer preço. Só que os requisitos que nos são impostos para sermos felizes estão baseados no material, no ter e no ostentar. Nós pais, trabalhamos cada vez mais para manter nosso status social e para oferecer sempre o “melhor” para nossos filhos. A consequência disso é um distanciamento cada vez maior da convivência diária com nossos filhos. Um levantamento na escola demonstrou que cinquenta por cento das crianças vinham de famílias de pais separados. Muitas delas, sem contato nenhum com a figura masculina do pai, e outras criadas integralmente pelos avós. Muitas crianças hoje de famílias ainda constituídas, afirmam que seria uma vantagem ter pais separados, como a maioria dos amigos da escola, pois teriam duas casas. Com isso, podem optar em qual casa ficar, de acordo com a ocasião que lhes for mais conveniente. Simples assim. Quando a mãe está chata, mudo-me para a casa do pai e vice-versa. Um fato marcante, foi a fala de um de nossos filhos durante um almoço. Não lembro exatamente como entramos no assunto de casamento. Certa altura, meu filho interrompendo a conversa, declarou asperamente que nunca iria se casar, e não teria filhos. Concordamos que ele tem o direito de escolher seu caminho, mas argumentei se eu a mãe dele não tivéssemos feito esta opção, ele não estaria ali conversando conosco. Para nosso espanto a tréplica foi a seguinte: “Para que eu vou casar, se casamento só da briga e termina em separação”. Espantados com a afirmação perguntamos quando presenciou uma briga entre seus pais, ou se algum dia ouviu-nos mencionar algo sobre separação. “Nunca”, respondeu. E completou: “Por isso mesmo, quando falo isso para os meus amigos eles dizem que sou mentiroso, pois é impossível pais que não brigam”. Meu filho estava sentindo-se então uma exceção à regra. Sinal dos tempos.
Analisando todo este árido cenário, qual resposta para a questão de como repassar para nossos filhos os valores básicos que vão determinar sua estabilidade emocional e assim definir os limites entre o certo e o errado?
Como já citei anteriormente, o óbvio precisa ser dito. Vou mais além. No caso da educação dos filhos, óbvio precisa ser demonstrado. Em um mundo com tanta violência, corrupção, banalização do sexo e apelo pelo consumo, fica a dúvida de quais são os reais valores. A sensação muitas vezes é que estamos remando contra a maré.
O primeiro ponto que temos que ter claro é que os valores são imutáveis, apesar das mudanças no estilo de vida e a evolução dos tempos. Dentre eles, cito os principais: honestidade, obediência, empatia, religiosidade, solidariedade, convivência social, respeito pelos mais velhos e sexualidade.
Com toda certeza, a quase totalidade de quem lê este texto encontra estas definições em qualquer livro da área, ou ouve em palestras de especialistas no assunto. O problema hoje é que, nós pais não estamos aplicando isso na vida de nossos filhos.
Cito dois exemplos práticos vividos pela minha família para tornar mais clara minha argumentação.
Quando meus filhos tinham entre 4 e 6 anos, levei-os a uma floricultura para comprar flores para o aniversário de minha esposa. Ao voltar para casa percebi que meu filho tinha no bolso um pequeno cartão colorido. Perguntei de onde havia tirado, e ele respondeu que foi na floricultura. Expliquei que isto era roubo, e toda aquela ladainha que não devemos mexer em nada do que não nos pertence etc, etc. Afirmei que iríamos imediatamente voltar, ele pagaria o cartão, e pediria desculpas ao dono na loja. Felizmente, por precaução liguei antes para floricultura. Expliquei a situação e a dona, para minha surpresa, falou que eu não precisaria me dar o trabalho de voltar para devolver um cartão que custava uma ninharia, já era tarde da noite e que deixasse as coisas por isso mesmo. Perguntei a ela se a floricultura já foi assaltada alguma vez, e ela respondeu que várias. Afirmei que se todos os pais tivessem minha atitude, sua floricultura nunca mais teria problemas de roubo. Os pequenos problemas não resolvidos de hoje serão os grandes problemas insolúveis de amanhã. Ela ficou constrangida e concordou. Levei o menino para pagar pelo o cartão e o meu segundo para presenciar a cena. A dona do estabelecimento, compreendendo agora a importância educacional do momento, passou o maior “sermão”, até pegou um pouco pesado, mas valeu a lição. Nunca mais, desde então, tive qualquer problema com furto de objetos com meus filhos.
Outro fato ocorreu neste mesmo período na escola. Eu e minha esposa sempre íamos buscá-los, ao encontrá-los encostados em uma parede com a cabeça baixa, já sabíamos que alguma coisa tinham aprontado. Em um desses dias, ao chegar à escola e vê-los na conhecida posição de que alguma coisa estava errada, perguntei qual era a boa nova do dia. Contaram que estavam brincando de pega-pega com outras crianças, quando entraram em uma sala de aula aberta, onde havia uma estante com uma TV e um aparelho de vídeo cassete. Na correria um dos meus filhos esbarrou na estante e a TV caiu no chão, antes batendo de raspão na cabeça do outro irmão. Pelo menos estava tudo em família. Perguntei se algum adulto tinha visto o ocorrido. Disseram que não. Examinei primeiro a “vítima” que levou a televisão na cabeça e pedi para me levarem até a sala. Lá estava a TV estatelada no chão. Levantei o aparelho que não estava muito danificado, colocando-o no lugar. Peguei os dois e levei-os para a sala da inspetora de disciplina. Poderia ter simplesmente fechado a porta e ido embora, pois ninguém viu absolutamente nada. Fiquei na porta e deixei-os relatar o ocorrido. A inspetora deu uma bronca, foi verificar a sala de aula, e rispidamente falou que iria chamar seus pais, que eles teriam que arcar com o prejuízo. Tamanho foi sua surpresa quando eu interferi afirmando que eu era o pai, e eu os tinha trazido ali para que contassem o que haviam feito para assumir as consequências de seus atos. A inspetora com os olhos arregalados, perdeu completamente a fala, pois até então ela achava que eu era um desconhecido que havia pego os dois “meliantes” em flagrante. Ficou tão desconcertada que afirmou que não sabia nem o que fazer. Sugeri que avaliasse os prejuízos e que após chamasse os meninos para que eles acertassem as contas com o dinheiro de suas mesadas.
Em mundo em que pais lotam auditórios ouvindo especialistas em busca de soluções mágicas para a criação de seus filhos, termino estas minhas palavras afirmando categoricamente que não existe uma fórmula igual para todas as famílias. Assim como faziam nossos pais e avós, os valores não são repassados só com palavras, mas sim com atitudes. Por isso, a convivência diária de pais e filhos é fundamental. Aproveitar as pequenas oportunidades do dia a dia para aplicá-los, aparando as arestas na formação do caráter. Servindo como guias, os pais vão dar o rumo do norte na bússola da vida de seus filhos. Poupar nossos filhos das experiências dolorosas tanto físicas quanto emocionais vão gerar adultos despreparados para lidar com as situações adversas que todos nós teremos um dia de enfrentar. Para isso, é preciso estar junto, fazer parte da vida dos filhos.
E os limites? Quando os filhos têm claros os valores dentro dos seus corações, os limites surgem imediatamente para definir a fronteira entre o certo e o errado. Esses limites de saber até onde posso chegar, é que vão dar origem ao pensamento ético na vida adulta, tão necessário nos dias de hoje. Dá trabalho? Exige abnegação, persistência, paciência e sensibilidade? Muita! Mas o resultado final e as lembranças das experiências vividas e aprendidas, por nós pais e filhos, ainda fazem valer a pena o desafio de constituir uma família e educar filhos neste mundo moderno. Este é o ponto final? Claro que não! Vem aí a adolescência (que digo a vocês não é fácil!), a vida adulta e quem sabe um dia os netos. Mas são linhas que ainda estou escrevendo na convivência diária, entre acertos e erros, alegrias e decepções, mas que fazem parte da vida do casal que aceita o desafio de realmente educar seus filhos e não delegam esta função a terceiros e à escola. O resultado final, tenho certeza, vai ser compensador.
Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccionais de Biguaçu e São josé, nº 5, junho de 2014, p.15.
Luciano Kowalski Coelho – Médico, casado há 20 anos, pais de dois filhos adolescentes. E-mail: destricoelho@terra.com.br
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