Tratar das configurações familiares nos dias de hoje apresenta-se como um grande desafio, tendo em vista a complexidade do tema. Muito se fala que a família está acabando, mas o que está acontecendo é uma profunda mudança no seu perfil. Embora o conceito atual de família seja muito diferente do que se tinha em tempos passados, ainda continua sendo a família o centro com que as pessoas se identificam e em que aprendem sobre a vida. Família e casamento tiveram sua função social transformada especialmente ao longo do século XX: já não se espera dessas relações somente o cuidar e manter a prole.
A versão idealizada de núcleo familiar estável e voltado para si fica ultrapassada. Surgem novas possibilidades de famílias, constituídas por grupos que habitam o mesmo espaço físico ou que, pelo menos, mantêm certa proximidade. Esses novos arranjos estão longe de ser instituições fechadas, apresentando-se sempre em evolução e transformação.
Pretendendo ampliar a visão de mundo dos interessados pelo tema, na tentativa de refletir sobre algumas das várias possibilidades relacionais que o ser humano é capaz de firmar, apresento aqui formatos de famílias já conhecidas.
FAMÍLIAS NUCLEARES
Também chamadas tradicionais, as famílias nucleares são constituídas de pai, mãe e filhos e já não podem ser vistas como uma forma familiar em que não existem problemas como se pensava há pouco tempo. O ideal de casamento hoje propagado pela mídia está muito distante do real. Quando as expectativas de “casamento ideal” não são cumpridas, muitas vezes são os filhos que sustentam o casamento, especialmente no que se refere às mulheres. Segundo pesquisa realizada por Gláucia Diniz e Vera Coelho: “Os filhos aparecem nesse contexto como aquelas pessoas que sustentam suas forças, organizam seu objetivo de vida, orientam seu sentido identitário” (FÉRES-CARNEIRO (org), 2003:93).
Na prática clínica, tenho observado que, na sua grande maioria, os filhos preferem que seus pais resolvam seus conflitos para ficarem juntos, porque isso minimizaria algumas dificuldades. Mas, quando eles observam os pais cada vez mais se desentendendo, eles cada vez mais sendo o depósito das frustrações desses adultos que deveriam protegê-los, verbalizam: “não quero mais ver meus pais brigando, acho melhor eles se separarem”.
A separação – mesmo que signifique o interrompimento de brigas – gera perdas para todos os membros da família, especialmente para os filhos: perda do ideal de família (ter pai e mãe morando juntos); datas especiais, antes compartilhadas, tendo que ser negociadas: “Sinto saudades da minha mãe quando viajo com meu pai, mas é gostoso”; e, em muitos casos, a continuidade dos conflitos entre pai e mãe, mesmo com a separação.
É comum observar crianças divididas entre pai e mãe quando estes se separam porque, muitas vezes, esses adultos – que deveriam estar em posição de proteção – contribuem para piorar a situação transferindo para os filhos suas frustrações e mágoas. Sabe-se que o sentimento da criança em relação à separação depende, e muito, da maneira como os pais e os adultos a sua volta conduzem o processo. A questão é que os adultos também estão fragilizados e muitas vezes carentes de apoio.
É preciso compreender que o processo de separação é muito próximo ao processo de morte: morre o sonho, morre o ideal. Há um espaço vazio em casa, há uma cadeira vazia na mesa e os sentimentos relacionados a essa perda precisam ser acolhidos, falando-se dele e sobre ele. A elaboração do luto da separação é fundamental para transformar esse momento difícil em possibilidade de crescimento para todos os envolvidos.
FAMÍLIAS MONONUCLEARES ou MONOPARENTAIS
As famílias mononucleares podem advir de produções independentes ou de separações em que há ruptura da relação parental com um dos progenitores. Atualmente, é grande o número de separações em casais jovens e também grande o número de famílias monoparentais sustentadas por mulheres.
Hoje, poucas mulheres permanecem casadas por dependência financeira (DESSEN, M. A. & COSTA JÚNIOR, 2005:117). A mulher que está insatisfeita e não depende economicamente do marido solicita muito mais a separação do que o homem. O preconceito com o divórcio, instituído no Brasil em 1977, ficou preso há décadas passadas, e o desafio atual é a busca pela harmonia, sem modelos certos ou errados. Penso que hoje se escolhe diariamente estar casado ou não, não casamos mais para sempre. Há uma avaliação diária sobre a satisfação que a relação está trazendo para cada membro do casal. Mas é importante lembrar que esse formato de família não é tão recente quanto se pensa. Em todas as épocas existiram famílias regidas apenas por um membro da parentalidade, fato que atualmente já não causa estranheza (FÉRES-CARNEIRO (org.), 2003:19). Também não é incomum vermos famílias sendo administradas pelo homem que, assim como a mulher, funciona como pai e mãe, tendo os filhos sob sua única responsabilidade.
FAMÍLIAS BINUCLEARES – GUARDA COMPARTILHADA
Privilegia a continuidade da relação parental após a separação, mantendo pai e mãe responsáveis pelos cuidados cotidianos dos filhos e permitindo a estes acesso sem dificuldades a ambos os genitores. Assim como tudo, esse modelo não deve ser imposto como solução para todos os casos. Na prática, essa forma de relação exige que os pais morem na mesma cidade e que conversem sobre regras comuns de educação, alimentação e saúde dos filhos.
Um aspecto bastante importante não pode ser negligenciado: separação conjugal não é ruptura parental. Filhos precisam dos pais e nenhum dos dois pode negar a existência do outro na vida de seus filhos. Nesse sentido, a guarda compartilhada pode contribuir e muito para uma convivência filial com pai e mãe que resolveram não ser mais marido e mulher e pode prevenir a chamada síndrome de alienação parental. Segundo SILVA (2003), tal síndrome é um processo que consiste em programar uma criança para que odeie um de seus genitores sem justificativa, por influência do outro com quem a criança mantém um vínculo de dependência afetiva e estabelece um pacto de lealdade inconsciente. Quando essa síndrome se instala, o vínculo da criança com o genitor chamado alienado torna-se irremediavelmente destruído. O genitor alienado, que a criança aprende a odiar por influência do genitor alienador, passa a ser um estranho para ela, e a convivência fica impossível de acontecer porque a criança não se dispõe ao contato, comportamento reforçado pelo genitor alienador.
Entretanto, também não podemos negligenciar a possibilidade do genitor alienado estar comprometido numa relação de violência doméstica com este filho, que se protege negando-se a estar com ele. De qualquer forma, meu objetivo é deixar aqui um alerta, despertando a curiosidade para a busca de mais informações a respeito deste tema tão novo que é a guarda compartilhada.
FAMÍLIAS RECONSTITUÍDAS – os meus, os teus, os nossos
Numa sociedade em que o modelo de família é o nuclear, em que não há reconhecimento jurídico de todos os novos laços construídos, as famílias reconstituídas necessitam de boa dose de espontaneidade para criar papéis, regras, fronteiras e rituais. Não há lógica melhor ou pior, certa ou errada. Há sim lógicas que respondem às necessidades construídas ao longo da história desses casais – implícitas ou explícitas – e entre eles acordadas.
Podem constituir-se tanto de mulheres e homens com filhos de relações anteriores (divorciados ou viúvos), unidos a parceiros também nessas condições ou solteiros. Por isso, as questões de parentalidade nessas famílias são tão próprias: a relação parental é anterior à conjugal. Os filhos dos casamentos anteriores ocupam um lugar central na vida do novo casal e o relacionamento com eles, por vezes, é o termômetro sensível das possibilidades futuras do casal.
Dentro dessa categoria estão os casais que vivem juntos, mas separados: preservam o seu próprio núcleo familiar e, ao mesmo tempo, como casal, realizam algumas atividades em conjunto que envolvem todos os filhos, como, por exemplo, pequenas viagens.
Cada casal precisa descobrir sua lógica, esquecendo a lógica convencional e entendendo que, apesar de inseridos em uma mesma situação, são originários de mundos completamente distintos. Após a separação, pais, filhos e família extensa têm que incluir, em seu processo de amadurecimento, a aceitação de uma nova configuração familiar.
Essa estrutura familiar tão complexa, que compreende maior número de avós, tias, irmãos, amigos, pessoas muitas vezes estranhas que passam a fazer parte do dia a dia dos envolvidos de uma hora para outra e passam a ser chamadas “parentes” (BRUN, 1999:22), traz uma discussão sobre o uso do termo “reconstituída”, na medida em que o significado da palavra não parece incluir todas as variáveis para o caso. Vários outros termos são utilizados (recompostas, recasadas), mas nenhum deles está isento de críticas revelando a dificuldade para se encontrar uma nomenclatura que expresse essa realidade.
FAMÍLIA HOMOAFETIVA
Famílias homoafetivas são formadas por casais do mesmo sexo. Esses casais têm muito das necessidades e dos conflitos dos casais heterossexuais, embora se defrontem com uma gama enorme de problemas gerados pelo preconceito e pelas dificuldades vivenciadas por todos aqueles que fazem parte de uma minoria social.
Os modelos teóricos e as estratégias de atendimento para ambos os casos são muito semelhantes, mas o casal homoafetivo enfrenta questões muito diferentes, relativas, por exemplo, ao patrimônio do casal e aos cuidados com a saúde em caso de doenças sérias – se o/a parceiro/a legalmente não é marido ou mulher, sendo, em decorrência, considerado/a solteiro/a, o direito de herança e benefícios fica para a família de origem. E quando esse casal quiser adotar uma criança? Mesmo que preencham todos os requisitos legais, precisarão escolher qual deles(as) formalizará o pedido de paternidade/maternidade do(s) menor(es). E quando um casal homoafetivo desejar uma adoção com responsabilidades legais compartilhadas, considerando-se que uma criança adotada em guarda única só receberá direitos relativos ao pai/mãe que tem sua guarda? Quais desdobramentos essa questão legal trará para as relações familiares?
Tivemos duas aberturas em relação a esse aspecto.
A primeira na cidade de Catanduva-SP, em 2004, quando o juiz e o promotor dentre outros fundamentos para a aceitação da adoção conjunta, orientaram-se pela Resolução nº 01/99, do Conselho Federal de Psicologia que, estabelecendo normas de atuação para os psicólogos em relação à orientação sexual humana, veda qualquer tipo de tratamento discriminatório com relação à homossexualidade, ratificando que esta não se trata de doença, desvio ou distorção.
A segunda, quando o Juiz da Infância e da Juventude da cidade de Bagé-RS, concedeu a duas mulheres a adoção de dois menores. Ambas conviviam em união afetiva sólida, há mais de oito anos, e uma delas já havia conseguido a adoção das duas crianças. A decisão do magistrado estendeu à companheira da mãe adotiva o vínculo de maternidade para com os menores, pois, além de esses já estarem, de fato, sendo educados e convivendo com ambas, o pedido da outra mãe socioafetiva se baseou no claro desejo de compartilhar, juridicamente, com a companheira (já, legalmente, mãe adotiva), as mesmas responsabilidades e deveres jurídico-parentais em relação aos menores.
Existe outra razão para justificar o não reconhecimento legal da existência de famílias homoparentais: a crença generalizada de que uma família homoafetiva poderá ser prejudicial ao desenvolvimento psicossociológico “normal” das crianças. Questiona-se se a ausência de modelo do gênero masculino e feminino pode eventualmente tornar confusa a própria identidade sexual, havendo o risco de o menor tornar-se homossexual. Também causa apreensão a possibilidade de o filho adotado ser alvo de repúdio no meio que frequenta ou vítima do escárnio por parte de colegas e vizinhos, o que lhe poderia acarretar perturbações psíquicas ou problemas de inserção social. Mas o que os estudos científicos revelam é que se a orientação sexual das figuras parentais fosse determinante na orientação sexual dos filhos, não existiriam tantos homossexuais filhos de pais heterossexuais. Como diz Maria Berenice Dias, desembargadora do Tribunal de Justiça do RS:
“essas preocupações são afastadas com segurança por quem se debruça no estudo das famílias homoafetivas com prole. As evidências apresentadas pelas pesquisas não permitem vislumbrar a possibilidade de ocorrência de distúrbios ou desvios de conduta pelo fato de alguém ter dois pais ou duas mães. Não foram constatados quaisquer efeitos danosos ao desenvolvimento moral ou à estabilidade emocional decorrentes do convívio com pais do mesmo sexo. Também não há registro de dano sequer potencial, ou risco ao sadio desenvolvimento dos vínculos afetivos. Igualmente nada comprova que a falta de modelo heterossexual acarretará perda de referenciais a tornar confusa a identidade de gênero. Diante de tais resultados, não há como prevalecer o mito de que a homossexualidade dos genitores gere patologias na prole. Assim, nada justifica a visão estereotipada de que a criança que vive em um lar homossexual será socialmente estigmatizada ou terá prejudicada a sua inserção social” (http://www.mariaberenice.com.br).
Conclui-se, então, que os problemas que se colocam às famílias homoparentais são de ordem social, jurídica e política, como sempre foram em todas as situações de mudança na instituição familiar, por exemplo, os divórcios e a existência de pais/mães solteiros nos anos 70 e 80.
Ao discorrer sobre essas formas de convivência familiar, espero ter contribuído para alertar a todos que são elas algumas formas entre tantas. Muitas vezes nos mantemos participantes de uma cultura que exclui as minorias. Reconhecer essas e tantas outras formas relacionais que ainda virão é simplesmente aceitar o outro na sua integralidade, palavra-chave para uma sociedade democrática.
REFERÊNCIAS
BRUN, G. Pais, filhos & cia. ilimitada. (1999). Rio de Janeiro: Editora Record.
DESSEN, M. A. & COSTA JUNIOR, A. L. (orgs.). (2005). A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras. Porto Alegre: Artmed.
FÉRES-CARNEIRO, T (org). (2003). Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Ed. Loyola.
SILVA, Denise Mª P. (2003). Psicologia Jurídica no processo civil brasileiro. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Sites consultados:
http://www.mariaberenice.com.br
Publicado na Revista nº 2 – 2010, da Ecola de Pais – Seccional de Biguaçu SC
Maria Cristina d’Avila de Castro – Psicóloga – CRP:12/00166; Especialista Clínica – CFP; Mestranda do Curso de Pós-Graduação do Depto. de Psicologia – UFSC; Psicóloga da Polícia Civil de Santa Catarina; Sócia Fundadora e Presidente da Associação Catarinense de Terapia Familiar (ACATEF) gestão 2004-2006; Coordenadora da Comissão Científica do VI Congresso Brasileiro de Terapia Familiar – julho 2004; Coordenadora Técnica, Supervisora e Professora do Movimento – Instituto e Clínica Sistêmica de Florianópolis de 1994 a 2003.
Obrigada….eu precisei muito desse assunto ?