“AGORA EU ERA O HERÓI, E O MEU CAVALO SÓ FALAVA INGLÊS…”

 Entre as muitas canções que embalaram minha infância e que me trazem leveza e alegria, a valsinha João e Maria tem lugar especial. Apesar de ter aparecido na minha vida adulta, consegue me levar à lugares, cheiros, cores e gostos de criança: me remete ao prazer do brincar.

               Segundo Maturana (2004) brincar, é qualquer atividade realizada como plenamente válida em si mesma. E brincadeira é qualquer atividade vivida no presente de sua realização e desempenhada de modo emocional, sem nenhum propósito que lhe seja exterior.

               Brincadeira é um agir no presente, mas frequentemente pensamos que quando brincam, as crianças imitam as atitudes dos adultos, como se estivessem em preparação para a vida futura. Errado! Brincadeira não tem intenção, é uma atividade vivida sem objetivos, realizada sempre de modo espontâneo. Nela cabem o real e o irreal, o pesadelo e o sonho. E mexe com as emoções.

               Para Maturana emoções são disposições corporais dinâmicas que especificam, a cada instante, o domínio das ações em que nos movemos. Assim, fazemos coisas diferentes sob distintas emoções e temos emoções que são contraditórias, já que se referem a domínios de ação que se negam mutuamente e que nos levam a conflitos emocionais que podem nos paralisar. Tais conflitos interferem em nossa afetividade e em toda gama de expressão de amor pelo outro, seja ele criança ou adulto.

               Somos frutos de uma cultura que desvaloriza, ou mesmo banaliza, as emoções: é comum que pensemos nelas como perturbações que interferem na racionalidade. A todos nós foi pedido, no lar e na escola, que controlássemos nossas emoções e fossemos racionais. A racionalidade é sem dúvida essencial: neste exato momento, em que está lendo este artigo, você não o estaria fazendo se não estivesse envolto em seu pensamento racional. Mas as emoções também são fundamentais: você não continuaria a ler sem estar sustentado pela emoção do desejo de continuar a ler.

               Assim, o ser humano não é só racional, é também emocional, e esse emocionar humano contribui para a construção do mundo da mesma forma e na mesma proporção que a razão.

               As proposições de Maturana se espalham por vários países e suas teorias revolucionárias vêm obrigando o mundo científico a repensar seu paradigma tradicional. Dentre elas, e a meu ver, uma das mais importantes é que ousou trazer para o mundo acadêmico o verbo amar. Ao afirmar que 90% do sofrimento humano tem origem no desamor, sustentou a teoria de que é possível resgatar o ser humano do domínio da dor e do sofrimento, que para ele têm origem cultural, ao nos valermos de instrumentos como a linguagem, a reflexão e a amorosidade.

               A era do patriarcado pôs fim ao brincar como modo legítimo do viver humano, capaz de se estender do nascimento ao túmulo. Perdeu-se pelo tempo a confiança no viver e os humanos começaram a busca da segurança e do controle como modos de vida. Perdeu-se pelo tempo o entrelaçamento espontâneo do amar e do brincar como aspectos da maneira humana normal de viver. Essas duas ações, amar e brincar, converteram-se em algo especial, que deveria ser almejado e buscado pela vida afora.

               Há um ano e meio uma pandemia obrigou o mundo a longos e sucessivos períodos de isolamento e/ou distanciamento social. Há mais de um século não aconteciam momentos que reunissem pais e filhos vinte e quatro horas em casa, cada qual envolvido em seus deveres domésticos, escolares e profissionais. Alguns pais pensam que estão dando mais atenção às suas crianças e jovens. Maior quantidade de presença física não determina a qualidade de uma relação. Quando somos presas de contradições emocionais, como a de estar com filhos pedindo atenção em suas dificuldades, no mesmo momento em que participamos de uma reunião de trabalho, não estamos juntos porque não há espaço para aceitação mútua. E é inegável que toda a humanidade está refém de fatores estressores, uma vez que não estamos fadados a fazer o que é possível, que nem sempre traduz o que queremos ou gostaríamos.

               Vivemos momentos desafiadores, enfrentando a insegurança, o medo, o luto e o novo reinventado a cada dia. Palavras como compartilhamento, generosidade e gratidão são usadas exaustivamente como tradução e expressão de amor e, no entanto, não compreendemos nem pensamos no amor como um fenômeno biológico, como um fator que nos constitui como humanos.

               Nossa cultura, tão focada na produtividade nos impede de ver e aproveitar o momento presente. Continuamente somos exigidos a prestar atenção a algo diferente do que estamos fazendo num dado momento. Quando faço o que faço com minha atenção voltada para o que vou obter, não estou conectado com o fazer e o prazer do momento. Vivemos orientados para o futuro em relação ao que queremos, ou no passado em relação ao que perdemos!

               E vivemos quase sempre mergulhados na competição ou na busca pelo sucesso ou excelência. A competição nos leva à tentativa permanente de controlar o outro e, portanto, à nossa negação do outro. Quando não aceitamos o outro como ele é, não abrimos espaço para o amor. Diferentemente do que se pensa popularmente, o oposto do amor não é o ódio, é a indiferença: nela, os seres humanos não se encontram, nem podem permanecem juntos.

               Em um estudo em que examinam a relação materno infantil a partir da normalidade, e não do patológico, Maturana e Verden-Zöller concluíram que numa relação sadia, a mãe ao brincar com seu filho, está realmente com ele: sua atenção não se separa da criança mesmo quando, em seu olhar sistêmico, tenha presente todo o entorno doméstico. Estão em conexão, sem outro objetivo que o de estar juntos, compartilhando e desfrutando um mesmo momento, embora estejam em ciclos de vida diferentes.

               Sim, adultos estão envolvidos em brincadeiras sempre que em seu emocionar fazem o que fazem atendendo ao fazer, e não às suas consequências. Podemos falar em brincar cada vez que observamos seres humanos, ou outros animais, envolvidos no desfrute do que fazem.

               Infelizmente, desaprendemos a vincular pequenas atividades do dia a dia com brincadeiras, nos tornamos adultos sisudos e sérios imbuídos de ideias de que responsabilidade não pode conter o prazer. E nos afastamos do riso, do cantar e do dançar sozinho, por puro prazer. E então, tristemente, e sem nos darmos conta, nos afastamos cada vez mais de manifestações de amor, a emoção básica que fundamenta nosso viver social.

               O amor, como um elemento que legitima o outro em sua existência, caminha junto com a ternura e a sensualidade. A brincadeira, como modo de viver no presente, abre caminho para o prazer de existir. Amor e brincadeira são modos de vida e de relação.

               Caso você seja uma pessoa que não se sinta confortável para brincar, porque está inteiramente tomado por partes de sua mente adulta e cheia de responsabilidades inadiáveis, sugiro que experimente convidar sua criança interior para gerenciar uma pequena parte do seu tempo. Deixe que essa parte tome conta de você, sem preconceitos ou vergonhas. Brinque com ela, permita-se escutar sem julgamento o que ela tem a lhe dizer. Talvez ela queira ficar a sós com você, talvez prefira chamar parceiros para a brincadeira. Aceite o que ela lhe propõe, saia do comando.

               Aceite esse convite sem medo de ser feliz. Suas partes adultas entrarão em cena, em casos muito pouco prováveis de perigo ou desconforto. Você sairá dessa experiência bastante simples, aliviado de estresses e com as energias recarregadas. Sua criança interior também estará atendida e, portanto, satisfeita. Se ainda guardasse com ela partes com feridas e não cicatrizadas, sua atenção ao acolhê-la e brincar com ela, terá efeito curativo ao longo do tempo. E você estará apto a desfrutar de momentos preciosos de sua criança interna saudável brincando com seus filhos e netos, que crescerão com mais possibilidades de saúde física e emocional.

               Espero firmemente que todos nos reapropriemos de nossa herança natural de desfrutar o amar e o brincar. Que abriguemos nossa parte adulta aprendiz e que tenhamos a grandeza de reconhecer que não sabemos de tudo, nem podemos tudo. Isso é saudável! Mas por favor, peço que não exagere e nem me entenda mal: não confunda (re) aprender a desfrutar o momento e a brincar com anarquia ou irresponsabilidade.

              Eu tenho uma pata chamada Chica que tem chifres roxos, olhos de arco íris, consegue ficar invisível, é do tamanho de uma formiga e mãe de dois pôneis e uma coruja. Como é o seu bichinho? Quer brincar comigo?

REFERÊNCIAS

MATURANA, H.; VERDEN-ZÖLLEN, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Atenas, 2004.

MATHIS, R.C.S, O emocionar matrístico na construção do mundo: um espaço de amor na obra de Humberto Maturana in O desafio do amor: questão de sobrevivência. Org. Gilda C. F. Montoro, Maria Luiza P Munhoz. São Paulo: Roca, 2010.

MATHIS, R.C.S. Amar e brincar: reforço nos elos familiares in Anais do 43º. Congresso Nacional da Escola de Pais do Brasil, 2007.

Regina Célia Simões De Mathis – Terapeuta de Casal e de Família. Terapeuta Interpessoal. Terapeuta Comunitária Integrativa. Presidente do Conselho de Educadores da Escola de Pais do Brasil – rcsmathis@yahoo.com.br

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