Adolescência em fraturas

A criminalização e patologização dos adolescentes servem de paradigma para pensarmos que toda a discussão em torno da violência urbana articula, nos seus meandros, uma especificidade de nossa época.

A realidade da cena brasileira envolvendo a criminalidade e os jovens refere-se antes a atos corriqueiros e de menor gravidade, praticados em série, correntes. São declaradamente crimes contra o patrimônio, roubos, furtos e porte de armas e drogas. A gravidade decorre em função do estrago e das fraturas que ocasionam à vida do adolescente no cenário da violência urbana. Inclui-se, aqui, grande parte do tratamento destinado a eles por parte do Estado.

No mundo contemporâneo nos deparamos com a degradação do lugar da criança. Se outra época anunciava “a majestade o bebê”, hoje prevalecem notícias de restos toscos de equações inconsistentes, composições de encontros fortuitos que não encontram lugar, sujeitos indesejados, objetos de todo tipo de abuso e uso. Daí, advém uma esteira de absurdos.

Vários são os discursos que se empenham em elaborar respostas que visam proteger as crianças, fazer delas prioridade. O discurso jurídico vem garantir direitos amplos, pautados na doutrina da proteção integral. É assim, em nosso país, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) vigora em termos legais. Avanços importantes se verificam, não sem rastros abusivos.

A criminalização e patologização de crianças e adolescentes são temas preocupantes e, constantemente, se apresentam associados.

Histórica e classicamente, esta conjunção se associa à loucura e sua intrínseca relação à história do nascimento da prisão. Interessa saber que artifício as conjuga no tempo atual. De qual maneira o mundo contemporâneo responde aos impasses trazidos pelos acontecimentos que envolvem a infância, a adolescência e o crime?

O dispositivo do biopoder repaginou um saber produzido nas sociedades disciplinares instauradas na modernidade, postulando que, quanto mais precoce for a intervenção, mais eficiente é um tipo de produção de subjetividade controlado na direção política que se impõe.

Experiências que integram um movimento em curso internacionalmente submetem desde crianças de apenas alguns meses de vida até adolescentes, propondo diagnosticar e intervir em algo que poderá “vir a ser” futuros transtornos mentais. Sinais nomeados subclínicos, como um tamborilar constante dos dedos ou expressões de medo em crianças, são tomados como indícios de futuros transtornos mentais, concebidos, portanto, como “distúrbios no desenvolvimento cerebral”.

Dentre os “distúrbios”, nem é preciso mencionar que se estabelecem com frequência aqueles que dizem respeito à conduta, aos “transtornos antissociais”, aos desvios (padrões), à agitação.

É corrente constatarmos ações envolvendo indisciplina em sala de aula, brigas familiares sem maiores gravidades ou em acontecimentos da sexualidade infantil, serem transformadas em atos infracionais. Como exemplo, reporto-me a uma declaração feita em uma conferência pública por um trabalhador das medidas socioeducativas de uma das cidades do interior paulista; segundo ele, 30% das medidas de Prestação de Serviço à Comunidade seriam determinadas em consequência das práticas de atos indisciplinares em sala de aula.

Dificuldades e manifestações subjetivas são estigmatizadas e tomadas como uma disfunção ou distúrbio e que, antes de serem abordados como sintomas – resposta de cada um ao mal-estar em viver –, são alvos a serem combatidos.

Outra vertente dessa concepção de tratamento que visa normalizar comportamentos e formas de existir, é a do déficit, fazendo da criança e do adolescente sua equação, ou seja, toma-os, eles mesmos, como deficitários. Sendo assim, não há espaço algum para o sujeito e sua singularidade, e há relevância máxima à investigação da substância que falta ou à busca pela punição que enquadra. A consequência deste discurso priva o sujeito de sua responsabilidade frente ao seu sintoma – isto é, sua resposta ao mal-estar, que engendra um sofrimento singular –, por fornecer uma identificação que tampona uma pergunta pela causa. Muitos se fixam nas características atribuídas aos diagnósticos ou nomeações que lhes são atribuídos: infrator, hiperativo, desatento, perigoso, drogado, cravando, assim, trilha certeira em seus destinos. Essa atitude também retira a responsabilidade e a chance de as disciplinas e as práticas construírem respostas consistentes e dignas da invenção humana frente aos seus impasses, de retomarem pra si o dever com as atribuições a que se propõem, seja educar, governar ou tratar.

No campo da psicopatologia, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) destaca-se nesse horizonte. É considerado um transtorno invalidante de longa duração e susceptível de promover consequências graves, envolvendo os riscos de distúrbios de conduta, ao qual está associado intrinsecamente em sua concepção.

Daniel Roy2 aponta que nos Estados Unidos o aumento do interesse no TDAH foi contemporâneo das preocupações concernindo à delinquência. Construção do axioma: crianças hiperativas de hoje, futuros adolescentes delinquentes.

Os debates são calorosos e, em muitas circunstâncias, endossam a impotência, remetendo aos casos “sem solução”. Situações, por vezes extremas, aparecem e revelam que a natureza humana – linguageira que é – inclui a violência, a recusa, a barbárie e, também, uma resistência salutar ao controle.

Se, por razões de sobra, tememos a configuração social à qual pertencemos, nem por isto estamos autorizados a polarizar o debate em torno dos acontecimentos drásticos, promovendo resoluções simplistas e repressivas, pois tais acontecimentos assim o são por serem igualmente raros. Posto o que temos da realidade da cena brasileira nesse contexto, pode-se demonstrar as consequências danosas de vastos e imperfeitos contextos, que apontam os estragos no campo da justiça, quando a lei não respeita o que em seu próprio texto se estabelece, seja por se fazer ausente, seja por se apresentar causando mais danos que o suposto mal que tenta combater.

No campo dos senhores: Unidade de Internação – O anúncio da fundação de uma Unidade Experimental de Saúde (UES) para adolescentes infratores em São Paulo é o paradigma desta situação. Trata-se de um local para atender determinações do Poder Judiciário para tratamento psiquiátrico em regime de contenção, reservado ao “atendimento de adolescentes e jovens adultos com diagnóstico de distúrbio de personalidade, de alta periculosidade”. A unidade seria destinada a “egressos da Fundação Centro de Atendimento SócioEducativo ao Adolescente (Fundação CASA), que cometeram graves atos infracionais”. Eis os recortes mínimos que podemos extrair do seu decreto. Sim, um decreto, que estabelece, exige e ordena.

A expedição de um decreto pressupõe urgência ou interesse público relevante. É um ato administrativo derivado do poder executivo, com a finalidade de regulamentar uma lei propriamente dita ou suprir uma lacuna do direito positivo – aplicado na prática –, em virtude da falta, ou até mesmo ausência de uma lei.

Algumas notícias correm. Outras se aproximam devagar. Os movimentos e as críticas públicas contrárias à lógica e operação estabelecida nessa iniciativa não tardaram a chegar 3 .

O que se determina e legalmente se institui muitas vezes está para além ou aquém da lei. Sabemos que é comum constatar nesses campos e por essas bordas o agravamento das condições dos adolescentes autores de atos infracionais nas situações em que a lei se encontra, estranhamente, fora da lei.

O contexto era pontual e foi revelador. Em 2003, mais um crime bárbaro envolvendo jovens paulistas comoveu o Brasil: o do assassinato de um casal de namorados adolescentes em um acampamento. Este caso marcou também a existência ou o ato inaugural da Unidade Experimental de Saúde, iniciativa que transcorria silenciosa, não fosse pela liberação (após cumprir os 3 anos de internação) e encaminhamento do seu “interno mais famoso”. Entre tantos aspectos, nada, a meu ver, causou mais espanto, do que constatar que a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo tornou-se responsável pelo estabelecimento!

Sobre o equipamento, o Departamento das Execuções da Infância e da Juventude ressaltava a Saúde Mental como um fator que interfere diretamente no resultado do processo socioeducativo, e laudos apresentaram ao Judiciário a necessidade de o jovem portador de transtorno mental ser acompanhado em local adequado e sob contenção. Os diagnósticos mais comuns eram: deficiência mental, esquizofrenia e transtorno de personalidade.

Apesar das afirmações de que na maioria dos casos prevalecia a inexistência de diagnóstico estabelecidos criteriosamente, a presença de “traços” de “transtornos mentais” justificava a internação.

Em uma concepção esclarecedora, em entrevista à CartaCapital4 , a professora de Psicologia Social da PUC-SP Cristina Vicentin diz, a respeito de uma pesquisa realizada em São Paulo antes da inauguração da UES, que já era patente o fenômeno de psiquiatrização do jovem autor de ato infracional. A psiquiatrização é circunscrita como a “vigência de um modo de gestão que usa o transtorno mental para provocar mecanismos de segregação e ampliação do tempo de internação”5 .

A fundação da Unidade acentua duas vertentes: o prolongamento da sentença, de caráter punitivo aos adolescentes, burlando o ECA e os estabelecidos 3 anos de prazo máximo de privação de liberdade; e a questão da periculosidade dos casos de saúde mental. Trata-se da velha forma, porém, com vestimentas mais sofisticadas. O diagnóstico condenatório é agora: o “distúrbio de conduta”.

Vale lembrar que, neste contexto, funda-se também um contrassenso, pois a conduta que determina essa iniciativa bem pode ser considerada um distúrbio, por ferir, causar comoção, perturbar o andamento e indagar o sistema socioeducativo e a política de saúde. Levanta uma reflexão quanto ao uso da Saúde Mental para controlar comportamentos e engendrar novos processos de exclusão.

Dos estragos: alguns lugares – No Brasil, trabalhos e programas inovadores são capazes de estabelecer uma interlocução com o campo formal do direito, enlaçando as redes das políticas públicas e, principalmente, mantendo o campo aberto às invenções responsáveis diante de cada acontecimento. Atentos às contingências, eles atestam a possibilidade de um fazer não segregativo, sustentando a ética das consequências.

A aposta é nas respostas dos sujeitos que não se contentam em aceitar o lugar de rebotalhos ao qual estão destinados socialmente.

A etimologia da palavra “delinquente” interessa: de-linquere. “Linquere” é deixar algo, ou alguém, no seu lugar, e a partícula “de” marca a separação, o destacamento. “O delinquente é – contra a natureza própria das coisas, de retornar ao seu lugar (Aristóteles) – aquele que desaloja: que desaloja as coisas, que se desaloja de seu lugar, do lugar que lhe é atribuído pela sociedade”6 .

Na relação que pode vir a se estabelecer com as crianças e os adolescentes, é decisivo explicitar o ponto que não se reduz às determinações do Outro Social. Faz-se preciso descobrir o que, para cada sujeito, tem o registro de uma marca, sem a qual ele não é; marcas de fatos e palavras.

Diretrizes políticas deveriam demarcar a possibilidade de um convívio conturbado. Existe um mal estar inerente à convivência, à civilização. Os detalhes que circundam a existência incluem o inusitado, o impossível de se prevenir, o que falha. Perspectiva que se lança sem a medicalização da vida, sem a condenação precoce e recorrente dos corpos.

REFERÊNCIAS

  1. Ao Programa PAI-PJ, pelos seus 12 anos de existência, persistência e brilhantismo. Pelo orgulho que sinto por ele existir. Aos 14 anos do Programa Liberdade Assistida da Prefeitura de Belo Horizonte. Àqueles que aprendem, com os adolescentes que por lá circulam, a se reinventar. Aos momentos de construção em supervisão com a equipe do CAPS-I de Sete Lagoas/MG pela insistência em querer saber fazer e receber os adolescentes de portas abertas. Também aos colegas da rede de Saúde Mental da Prefeitura de Belo Horizonte pelos tão precisos e delicados atos de escuta e fazer político, que permitem a construção do universo ao seu redor, ampliando os campos.
  2. ROY, Daniel. Hiperatividade: ordem e desordens. La Cause Freudienne, Paris: Ed. Navarin, n. 58, 2004.

3. Em 2009, a imprensa nacional divulgou duas importantes reportagens: “A desconhecida Unidade da contra-reforma psiquiátrica”, publicada pela CartaCapital; e “Prisão-Hospício: unidade misteriosa esconde jovens infratores”, veiculada pela Caros Amigos.

4. “A desconhecida Unidade da contra-reforma psiquiátrica”, matéria publicada pela revista CartaCapital, em 2009.

5. Ver entrevista concedida na reportagem “A desconhecida Unidade da contra-reforma psiquiátrica”, publicada pela revista CartaCapital, em 2009.

6. RASSIAL, Jean-Jacques. “O adolescente e o psicanalista”. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999, p 55.

Cristiane Barreto Psicóloga, conselheira do CRP-04, consultora addoc do CFP (tematica: Adolescentes em conflito com a lei). Piscanalista – Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e Da Associaçao Mundial de Psicanalise – EBP/AMP. Supervisora Clínica da Rede de Saúde Mental da Prefeitura de Belo Horizonte. Supervisora de Caps-i pelo Ministério da Saúde. Cordenadora do Programa Liberdade Assistida de Belo Horizonte de 1998 a 2006. cristianebarretonapoli@yahoo.com.br

Publicado na Revista Diálogos ed. 8, setembro de 2012, p. 40-44  https://site.cfp.org.br/publicacoes/revistas-dialogos/

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