A família, em lockdown, “se olha” no espelho

O mundo parou e o caos se instalou!

E m 2020, fomos surpreendidos por um mal invisível e silencioso – o Coronavírus COVID 19. A rotina, antes programada, passou a ser negociada dia a dia e a previsibilidade necessária ao ser humano para se sentir seguro e tomar decisões, deu lugar às incertezas e receios, ao stress e ansiedade. Ficou apenas a evidência de que não temos controle sobre tudo e que a partir daquele momento, grandes mudanças estariam por vir.

Em tempos de isolamento social compulsório – lockdown – a distância e a impossibilidade do convívio com familiares e amigos, se transformam em um verdadeiro drama, nada fácil de encarar, gerando a sensação de impotência, o sentimento de abandono, saudade e preocupação com os que ficaram afastados. O novo cotidiano impôs o confinamento, desestruturando as pessoas e provocando diversas reações: medo (incerteza e insegurança), euforia (sensação de quase férias, saídas para compras e lazer), tédio (ociosidade, solidão), introspeção (questionamentos, tristeza, frustração), irritação (insatisfação, impaciência) impotência (acomodação, adaptação) e sanidade mental (mantida pelo convívio e rotina na família).

No início, algumas ações foram realizadas para amenizar o isolamento social: idas às varandas e janelas para tocar instrumentos, cantar, recitar; interação à distância com a vizinhança; melhor organização da família; disponibilidade dos mais jovens em servir os idosos próximos, indo ao mercado ou à farmácia; vídeos e mensagens de apoio mútuo e de esperança nas redes sociais; lives diversas. O processo de lockdown não aconteceu da mesma forma neste extenso e diverso Brasil de regiões isoladas dos grandes centros, de muitas comunidades desprovidas, famílias de baixa renda com 6, 7 ou mais pessoas habitando num mesmo cômodo, sem condições básicas de saneamento e de higiene, agravado pela falta de garantia na alimentação. A grande maioria sobrevivendo do trabalho informal e impedida, neste momento, de sair de casa, dependendo do auxílio emergencial do Governo Federal. Para estas famílias, já tão desassistidas, as restrições da pandemia só vieram aumentar o sofrimento.

A crise econômica atingiu a todos: fechamento do comércio e de serviços não essenciais, paralização do mercado informal, quebra de empresas, desemprego e mudança do padrão de consumo das famílias. Menos pessoas com plano de saúde e consequentemente mais demanda para o SUS. Mortes causadas pelo COVID 19 e mortes por outros “vírus” que matam milhares de pessoas todos os dias: a fome, a injustiça, a ambição, a omissão, a corrupção, a violência …

Convivência familiar no lockdown:

laços colocados à prova:

O que tanta proximidade e mais tempo de convivência têm causado às famílias, já que a rotina do “corre-corre” foi alterada? Filhos em casa, pais inicialmente sem saber como mantê-los ocupados. A rotina diária mudou de repente com as creches e escolas fechadas e os pais em home-office. Desafios impostos a todos, pressionando-os a buscarem novas formas de relacionamento. Pais confusos se questionam sobre a melhor maneira de conduzir os filhos: deixar acordar mais tarde, ver TV por mais tempo, usar o videogame e o celular livremente ou agir conforme o humor dos filhos a cada dia?

Muitas atividades para dar conta: tarefas domésticas, monitoramento das aulas on-line, cobranças no trabalho, horas vagas para preencher com os filhos menores (contar história, ler, desenhar, pintar, jogar, brincar, ouvir música, sessão de cinema com direito a pipoca, cozinhar, limpar a casa). Tudo apontando para se “fazer do limão, uma limonada”, transformando esse momento difícil em memória afetiva para os filhos que, certamente, se lembrarão dessa fase como o melhor tempo passado com seus pais, no que diz respeito à quantidade e qualidade de presença.

Assim, a família terá exercido a sua função primordial de proteção e apoio em momentos de diversidade, garantindo a saúde física e emocional dos filhos.

O ano letivo no novo cotidiano

Em tempos de pandemia, pais de classe média mostraram-se muito preocupados com os “conteúdos escolares” e o aproveitamento das aulas on-line, enquanto as crianças se sentiam confusas e apreensivas, sem entenderem bem o que estavam passando. Por sua vez, os professores alertavam os pais, que era hora de investir em “conteúdos humanos”: passar afeto aos filhos, ensiná-los sobre higiene e cuidados, fazer tarefas juntos … Hora de conhecê-los melhor, saber o que pensam e sentem, perceber quem são essas pessoas que eles levam e trazem da escola, do balé, da natação, do inglês …

A base de uma boa convivência familiar é a manutenção de uma organização segura e flexível, observada a hierarquia e o respeito às diferenças. O aconchego do ambiente familiar é fundamental para o desenvolvimento saudável dos filhos, o que implica amor, limites, solidariedade, compreensão, direitos e deveres.

Mas, num “outro” Brasil de famílias de menor renda e filhos ociosos em casa, sem estímulos ou acompanhamento, sem espaço suficiente nem ferramentas tecnológicas, crianças e adolescentes são impedidos de usufruir do ensino remoto disponibilizado por algumas escolas da rede pública. Fato que se agrava dia a dia, resultando na defasagem da aprendizagem e no aumento das desigualdades sociais.

Quase um ano após o surgimento da pandemia no Brasil, algumas escolas da rede privada abrem suas portas, oferecendo o ensino híbrido, metodologia que envolve aulas presenciais e remotas. O processo de aprendizado ocorre na escola em determinados momentos e em outros, o aluno estuda sozinho em casa. Oxalá, a rede pública universalize esta nova oportunidade de aprendizado, favorecendo seus alunos.

Efeitos do lockdown nas relações familiares

Sendo o Brasil, um país onde as interações interpessoais cotidianas são mediadas pelo toque – aperto de mãos, abraços e beijos – o distanciamento durante a pandemia provocou uma ruptura brusca na rotina natural da vida, que precisa ser reconfigurada. O stress atingiu a todos e muitos elevaram o nível de ansiedade e depressão, acumulando dúvidas quanto ao futuro, insegurança ao arriscar-se nas ruas e na condução para buscar seu sustento. A perda do emprego ou a redução da jornada e do salário e a adaptação ao home-office, consistiram em desafios a serem vencidos a curto prazo.

Houve aumento da violência doméstica e a explosão dos litígios familiares com pedidos de divórcio. Casais relataram que as incompatibilidades ficaram mais evidentes neste período, diante do stress cotidiano, da divisão de tarefas, dos cuidados com os filhos e da convivência do casal por mais tempo. Sinalizaram que mesmo estando juntos em suas casas, se sentiam sozinhos. Um divórcio não acontece de uma hora para outra, mas acredita-se que a pandemia tenha contribuído para que o casal tomasse uma atitude diante de um relacionamento que já não vinha bem. Além deste fato, atribui-se ao aumento do número de separações, a facilidade do serviço dos cartórios on-line, cujas demandas são autorizadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por meio da plataforma E-Notariado, devendo o casal estar de comum acordo e não ter pendências judiciais (filhos menores ou incapazes) como ocorre nos divórcios presenciais.

Legados da pandemia

O período de crise na saúde e o lockdown mexeram com os sentimentos das pessoas, alertando-as para a necessidade de mudança de hábitos e de comportamento. Situações relevantes já estão sendo observadas:

Sentimento de comunhão fortalecido e a perda da ilusão de autossuficiência;

Maior conexão dos pais com os filhos e envolvimento na sua educação, equilibrando a vida profissional e pessoal;

Divisão de responsabilidades na família, valorizando o serviço doméstico;

Adaptação das famílias ao home-office e aumento significativo de solicitações às empresas e instituições para trabalhar em casa;

Maior visibilidade das desigualdades e vulnerabilidade dos mais carentes;

Aumento da consciência política das comunidades e reconhecimento da cidadania;

Melhor noção do nosso impacto no meio ambiente, ao ver a natureza se recuperando sem a presença humana;

Admissão da nossa fragilidade existencial.

Para refletir

Quando houver o controle do COVID 19 e todos se tornarem livres outra vez, será importante que as famílias tenham revisto sua atuação e passem a adotar um novo modelo de relacionamento com lições aprendidas, erros corrigidos, falhas perdoadas, acertos potencializados e laços refeitos ou ainda mais fortes.

Há quem diga que essa parada involuntária foi um “golpe” de Deus para olharmos melhor o nosso próximo. Que cada um possa fazer do caos atual, uma reflexão dos próprios atos. É preciso silenciar, orar, clamar para a vibração se elevar e a imunidade se fortalecer. É um silêncio curativo de reverência a Deus que nos fala. Certamente, esta é uma oportunidade única para colocar a própria vida em ordem, rever conceitos e valores e ressignificar a existência. Sejamos luzes, façamos movimentos no caminho do bem e a esperança contagiará os que estão à nossa volta.

Para concluir a reflexão, apresentamos o poema “Saber Viver”, da iluminada Cora Coralina:

Não sei se a vida é curta ou longa demais pra nós,
mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita.

Alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que acaricia,
desejo que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja curta,
nem longa demais
mas que seja intensa
verdadeira, pura …
Enquanto durar.”

Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccional de Salvador | Revista nº 41 – 2020/2021, p. 5-6.

Autora: Maria Izabel Passos Imbiriba Pedagoga. Há 19 anos na Escola de Pais do Brasil. Com seu esposo, casal RN/BA

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